08 janeiro, 2014

Abelhas em S. Tomé e Príncipe

Mais uma aventura apícola, desta vez em terras africanas, mais precisamente em S. Tomé e Príncipe, antiga colónia portuguesa no Golfo da Guiné, a cerca de 300 km do continente africano e sobre a linha do Equador.

Clima tropical muito característico, temperaturas altas e muita humidade. Florestas densas, fechadas e vegetação luxuriante a cobrir a maior parte do território. Não foi sem surpresa que soube da existência de abelhas e “apicultores” nas ilhas, pois numa incursão anterior que fiz à Amazónia, cujas características climáticas e de vegetação se podem comparar, disseram-me que a Apis mellífera não tinha muito sucesso nessas condições por causa da densidade da floresta.

Certo é que logo nas primeiras deambulações, em plena cidade, me apercebi da abundância de abelhas nas flores dos jardins. Suponho que se trata de uma das várias subespécies africanas, apesar de ninguém mo ter confirmado nem tão pouco de qual delas se tratava.

Encontradas as abelhas seguia-se a demanda pelos apicultores, em quase todos os povoados há um ou dois, assim me informaram, mas não apareciam. Foi necessário perseverar bastante para desencantar algum e só a muito custo se assumiam como “apicultores”. Pouca conversa bastava para perceber que não eram apicultores na verdadeira asserção da palavra, pois para se ser apicultor não basta colher e comercializar o mel.

Mesmo assim e na minha ingenuidade ainda acreditei que os colectores de mel apenas recolhiam os favos sem criação, deixando a colónia mais ou menos incólume até à próxima cresta, marcando a árvore e apossando-se assim das abelhas. Erro meu, numa conversa com os autóctones apercebi-me que um deles se referia aos pretensos apicultores como “queimá vunvú” o que numa tradução livre do dialecto local quer dizer “queimador de abelhas”…

Já agora anotem esta, no dialecto forro (crioulo de S. Tomé e Príncipe) “vunvú” (ou vunvum) é abelha e “mélé” é mel!

Colónia selvagem - S. Tomé

Mais tarde, o responsável pelo Parque Natural da Ilha do Príncipe, confirmou-me os meus piores receios: as colónias selvagens eram literalmente queimadas, destruição total das abelhas, para assim retirarem o mel sem receio das picadas. Já se notavam inclusivamente os efeitos nefastos de tal actividade na polinização de cultivares e espontâneas das regiões mais afectadas.

O Parque Natural do Príncipe pretende inclusivamente levar a cabo sessões de formação para que se racionalize a prática da apicultura, de modo a que se preservem as abelhas e se mantenha a polinização de tão importante coberto vegetal.

Muitas horas de marcha, muitos quilómetros calcorreados na selva, calor, humidade, mosquitos, tempestades e até uma chuvada de grandes sementes que atingiam o solo com estrondo.
Não há nada mais agradável...

Foi precisamente na Ilha do Príncipe e após uma caminhada de muitos quilómetros pela floresta, que consegui falar com um ex colector de mel, o Zé António.

Das minhas notas de viagem:

Depois de muito o procurarmos sem sucesso, foi ele quem nos encontrou (o Zé António), alguém lhe disse que o procurávamos e veio ter connosco. Aqui as mensagens orais correm mais depressa que um sms de telemóvel.

Abelhas a aproveitar os sucos doces num caroço de manga abandonado no chão.

Foi então este ex colector de mel que me descreveu o processo de colheita e é caso para dizer que se trata de uma actividade demasiado pesada no país do “leve leve”.

Era um rapaz baixo, magro e franzino, vinha com uns calções e uma camisa cor de café com leite, falava e ria com a mesma vivacidade de um jovem de quinze anos, mas percebia-se que era mais velho, foi mesmo uma surpresa quando disse que tinha 45 anos, mais um que eu…

Há dois ou três anos que o Zé António abandonara a ocupação de recolector, mas chegava a tirar 25 litros de mel de um único enxame selvagem. Conta que essas colónias se encontravam quase sempre em árvores muito altas, a 20 – 25 metros de altura e por vezes a 30.

Para aceder à colónia e retirar o mel, o que fazia apenas de noite por causa da agressividade das abelhas, lançava uma corda sobre um ramo mais alto e içava-se por essa corda puxando uma das extremidades. Lá em cima fixava-se, protegia o rosto o melhor que podia e colocava um “fatcho” a arder sob o favo.

Esse archote, feito de folhas e cascas secas de palmeira, era passado ao longo dos enormes favos construídos no exterior da árvore, alguns com cerca de um metro, matando as abelhas que caíam cá em baixo aos milhares.
Foi uma surpresa saber que estas abelhas também constroem os ninhos ao ar livre.

A destruição das abelhas com o archote era feita com alguma ciência, evitando derreter os favos de cera, senão perdia-se todo o trabalho. Enquanto afugentava as abelhas desta forma, na base da árvore um assistente tinha-lhe preparado uma garrafa cheia de petróleo e com uma mecha a sair pelo gargalo, que era depois acesa como uma lanterna para atrair as abelhas sobreviventes para longe dos pretensos apicultores.

Nessa altura o nosso guia, o “Gila”, queixou-se, ante o riso do Zé António, dizendo que quem ficava cá em baixo era o mais sacrificado. Muitas abelhas ainda vivas caiam nesse local e picavam quem aí se encontrasse. A lanterna improvisada com a garrafa era colocada afastada do tronco da árvore, mas isso não era o suficiente.

Uma vez eliminadas as abelhas era içado um balde pela outra ponta da corda, os enormes favos (favas, como lhes chamavam) eram cortados e colocados nesse recipiente.

O balde era então descido pela corda e logo nesse local os favos eram espremidos para dentro de uma vasilha, sendo as bolas de cera abandonadas no campo, sem qualquer utilidade. Porque razão não fazem isso em casa? Com melhores condições de higiene. Não o fazem porque, segundo me explicaram, tal actividade iria atrair milhares de abelhas que poderiam picar as pessoas da comunidade.

Este tipo de actividade tende a reduzir bastante a população de abelhas da pequena ilha, sendo por isso insustentável. O Zé António pouco ou nada sabe de apicultura, limitava-se a eliminar as colónias de abelhas e a pilhar o mel, que espremia para uma vasilha no local do massacre.
E a cera? Ainda falei ao Zé António na importância que tal cera biológica poderia ter na Europa. Deixou-se rir com tal informação.

Ainda me falou numa segunda raça de abelhas, mais escuras, negras até, mas desconfio que se tratasse de alguma confusão, pelo menos não as cheguei a ver. Mais dois dedos de conversa, no total nem meia hora durou este meeting entre apicultores de realidades tão diferentes.

Esta prática não é isenta de riscos, para além das picadas na escalada a árvores muito altas e em sítios isolados e de terrenos acidentados, por vezes acontece o pior: O Zé Luís “Zé das Abelhas” com quem falei dias mais tarde, mostrou-me enorme cicatriz no rosto, fora o braço quebrado numa noite de azar. Ia mal protegido, as abelhas entraram-lhe pela roupa em grande quantidade e protagonizou uma aparatosa queda quando tentava descer à pressa. Valeu-lhe estar próximo de uma estrada, sendo por isso mais fácil o resgate, mas mesmo assim teve de ser evacuado de urgência para S. Tomé onde lhe puderam ministrar os cuidados necessários, mas ainda hoje tem mazelas.

O Zé Luís e o Rodrigues, junto à colecta de vinho de palma que as abelhas tanto apreciam e eu também.

Foi numa das deambulações pela ilha com o Zé das Abelhas que tive a oportunidade de provar o mel de S. Tomé e Príncipe, outro apicultor que vivia no local e foi buscar uma garrafa com um mel muito líquido e de cor negra. Já se devem perguntar porque razão andando eu acompanhado por um apicultor ainda não tinha provado o respectivo mel? É melhor nem perguntarem…

Despejei um pouco de mel da garrafa para a palma da mão e provei. Um mel agradável de aroma e sabor muito forte, decerto que seria muito apreciado nos países da Europa do Norte. Eu gostei bastante.

Parece uma piada mas ainda tentei encontrar nesse mel algum aroma ou sabor que me lembrasse a banana, mas nada feito, era uma grande miscelânea de sabores. Digo-o porque uma das florações onde mais encontrei e fotografei abelhas foi precisamente junto às enormes flores na extremidade dos cachos de bananas. Parecia que tentavam aceder ao interior para alguma espécie de nectários.
Só mais tarde, na Roça de S. João de Angolares, no Sul de S. Tomé, é que vi uma dessas enormes “flores” com uma bráctea levantada, expondo uma boa quantidade de flores minúsculas onde as abelhas colectavam o néctar.

Mas convenhamos que teria a sua graça, exibir um monofloral de banana… sobretudo na nossa “república”…

Noutra volta, agora pelo Norte da Ilha de S. Tomé, em Mucumbli, junto a Ponta Figo, conheci um italiano que aí se radicara há muitos anos, Tiziano Pisoni. Já fora apicultor em Itália onde deixou as abelhas a um sócio. Aqui pretende reiniciar a actividade, como complemento a outras actividades agro-turísticas. Não me soube dizer que subespécie das abelhas africanas povoava a ilha, mas caracterizou-as logo de muito agressivas, difíceis de trabalhar e não aceitavam as caixas de madeira com facilidade.

Tinha apenas duas colónias instaladas em colmeias Langstrooth e mais uns quantos enxames selvagens em árvores ocas. Contou que transferiu um enxame de uma árvore para uma colmeia mas as abelhas desertaram ao fim de pouco tempo. Entretanto houve outro enxame que entrou voluntariamente noutra caixa, mas as abelhas não aceitaram as ceras que trouxera da Europa, os alvéolos eram demasiado largos para o reduzido tamanho destes insectos e acabaram por construir os favos entre os quadros. Chegou a fazer testes para encontrar ácaros de varroa mas os resultados foram negativos.

Falou-me no mel escuro, muito húmido e na extrema dificuldade em conservá-lo, quase sempre acabava por fermentar. Não foi possível visitar o apiário pois chovia torrencialmente, mas mostrou-me umas quantas árvores e arbustos de interesse apícola que cultivava no jardim.

Ainda tentamos visitar um apicultor recolector que vivia nessa região, na Roça Ponta Figo, mas estava ausente na montanha conforme nos informaram, andava a crestar umas colónias que possuía para esses lados. Mesmo assim os vizinhos levaram-nos ao apiário perto de casa, onde havia duas ou três caixas de madeira pintadas de azul, assentes sobre um muro e que suponho que funcionariam como cortiços, sem quadros móveis.

Devo dizer que foi a reportagem apícola possível, num país onde a apicultura não existe, mas com muito potencial e oportunidades em que ajudas financeiras oportunas e sobretudo a formação de apicultores poderiam dar frutos a muito curto prazo.

Abelha solitária que inicialmente me pareceu do género Apis, nidificava em orifícios abertos na madeira.

Ninho de vespas extremamente agressivas e muito abundantes nas ilhas de S. Tomé. Recebiam aqui o carinhoso nome de Maria Miranda.

Uma vespa solitária.

Uns amigalhaços que sempre nos acompanharam nas praias do Ilhéu das Rolas.

Pico Caué ou Cão Grande, um dos monumentos naturais mais iconográficos no Sul de S. Tomé.

E para fechar a "chave de ouro", esta foi a primeira fotografia que a Luísa tirou mal chegamos a S. Tomé. Num país com tão boas relações com Portugal, onde a maior parte dos produtos encontrados no mercado são portugueses, logo o mel...

Um abraço e agradecimento especial:
Ao meu amigo e irmão Adlander Aragão, o mais experiente e exímio condutor de todo-o-terreno de S. Tomé. Cujas preferências musicais nos fizeram apreciar até à exaustão uma das músicas mais surrealistas que alguma vez ouvimos. Obrigado também pela magnifica festa do 44º aniversário que nos proporcionaram na praia junto ao Forte de S. Sebastião.

Ao Aurélio e ao Estevão Soares, guias do Parque Natural do Obô, pela maior colecção de plantas afrodisíacas que me mostraram, não para agora mas para um dia que delas necessite, claro está. Também pela alucinante corrida através de um trilho cheio de água, atravessando a selva desde a Lagoa Amélia e debaixo de uma tremenda tempestade tropical.

Ao Tiziano Pisoni, pela forma simpática com que nos recebeu na Quinta Mucumbli e connosco partilhou os seus conhecimentos de apicultura.

Ao ZeferianoGila” guia do Parque Natural do Obô na ilha do Princípe, infatigável na subida do Pico Papagaio que não chegamos a alcançar mas que muito valeu pelas bonitas paisagens e pelos apicultores que nos apresentou.

Ao Zé António e ao Zé Luís (Zé das Abelhas) pela partilha de conhecimentos e experiências com as abelhas e pela vontade manifestada em racionalizarem as respectivas actividades apícolas.

Ao Ílidio, segurança do Resort Pestana Equador, pelas colónias de abelhas selvagens que nos encontrou no Ilhéu das Rolas.

9 comentários:

Luís Miguel disse...

Que prazer voltar a ler um relato do amigo Pifano, a blog-esfera nao é a mesma sem isso.

Forte abraço

Eco-Escolas disse...

Meu amigo
Mais uma fantástica reportagem.
O que me fascinou foi a ilustração da ascensão do "queimá vunvú" através de uma corda para efetuar a destruição de mais um enxame.
Fez-me lembrar as pinturas rupestre em Cuevas de la Araña. Fantabulástico.
Não li nada sobre sanidade? E Varroas?
Não precisam candidatar-se à medida 2A ou também são obrigados?

Marques

Anónimo disse...

Ena, isso e que foi caminhar!
Morfologicamente sao muito muito parecidas com as que vi em CapeTown, tanto nas montanhas como no sope de Table Mountain, e pelos vistos a agressividade tambem se parece com as SulAfricanas.
Serao um hibrido? AM Capensis X Monticola...ou algo do genero?!!
Relato muito parecido com o que li de um grupo de investigadores nas abelhas da base do monte Kenya.

Abraco e saudacoes,
Abelhasdoagreste

Alien disse...

Marques,

Foi um dos temas que mais debatemos foi precisamente a necessidade deles se candidatarem à Medida 2A, mas segundo a opinião geral para "queimá as vunvú" os archotes de palmeira seca vão dando conta do recado.

Afonso,

Pelo que consegui saber as abelhas no arquipélago não foram introduzidas pelo Homem, suponho que se trate de povoamento natural por migração a partir da estirpe mais próxima e que não consegui que mas identificassem.
Fica o desafio para visitarmos as abelhas do Monte Kenya ;)

abraços
Joaquim Pifano

Anónimo disse...

Que rica ideia!!
Axo que para daqui a um par de aninho se pode organizar a coisa.
Entretanto arranjei quem me forneca 2as Monticolas X Buckfast que chegarao em Junho ou Julho! e so cstam 30 euritos cada. Nessa expedicao de que falo trouxeram esperma de zangao Monticola Puro (3000m de altitude) que foi usado a fecundar Buckfast e Linguisticas. Depois voltaram a inseminar a 2a geracao, conseguindo 75% da genetica. Dizem que com 6graus C e nevoeiro elas trabalham. Para o eucalipto seria um luxo!!!

Enquanto Maome nao tem dinheiro para ir a montanha..traz se a montanha a Maome!! lol

Sudacoes, Agreste

Unknown disse...

Uma excelente reportagem, O meu profundo agradecimento pela singularidade da sua pessoa,
Com muita saudade.
Adlander Aragao

Anónimo disse...

Excelente reportagem
estive por esses locais há alguns anos atrás mas ainda não era apicultor. COmprei na altura "mel do Obô", mel escuro e líquido pretensamente da floresta primária do Principe e S. TOmé. Temo que a humidade extrema e pluviosidade sejam factores que restringam a actividade nestas ilhas (há locais onde chove mais de 12000 mm/ano...)
Pedro Rocha

Alien disse...

Amigo Pedro Rocha,

De facto o problema do excesso de humidade que sempre acaba por fermentar o mel foi-me referido por algumas pessoas.
Também assim acontece com os méis produzidos na Amazónia, onde os apicultores se preparam para utilizar equipamento para desumidificar artificialmente o mel, prolongando-lhe assim a longevidade.

Pessoalmente também fui bem afectado pela "humidade" pois encontrava-me em plena floresta quando fui surpreendido por tremenda tempestade :)

Forte Abraço
Pifano

Unknown disse...

Espectacular, mais uma viagem virtual que me for relatada, pode-se dizer que, com "requintes de malvadez".

Jorge Tiago