26 outubro, 2009

Os Cortiços com "Corpela" do Gerês

Numa viagem recente ao Parque Nacional da Peneda – Gerês, ocorreu-me procurar aqueles cortiços muito iconográficos com um “chapeuzinho” de palha que os protege da chuva e do calor. Já começa a ser conhecida a minha paixão pelos cortiços tradicionais e como tal não queria deixar escapar a oportunidade de fotografar tais colmeias.
Depois de voltas e voltas pelos campos e serras, pouco mais vi que dois ou três apiários de colmeias móveis, mas dos ditos cortiços… nada. Ainda perguntei a uma série de pessoas pelas aldeias, mas a maioria era peremptória no facto de tais cortiços já serem muito raros, chegando a duvidar que eu os encontrasse.
Ainda cheguei a ter esperanças, quando um guarda-florestal me garantiu que o sogro ainda possuía duas ou três dessas raridades, mas o acidentado do terreno aliado à minha desorientação permanente impediu-me de os encontrar, apesar das instruções que me deram.
Não é muito o meu feitio, mas desisti da ideia, acabaram-se os cortiços, se os quiser admirar que consulte os folhetos turísticos e faça assim a festa…
Regressei ao Parque de Campismo da Cerdeira, onde tinha pernoitado e fui ao mini mercado comprar mantimentos para a próxima jornada. Curiosamente, à entrada do estabelecimento encontrava-se exposto um pequeno cortiço sobre um bloco de granito. Não possuía a dita cobertura de palha, mas voltou a avivar-me a curiosidade.
Acabei por desabafar com o proprietário do estabelecimento, o Sr. Pires, que também era apicultor, o meu infortúnio na busca das ditas colmeias. Ele confirmou-me o que eu já sabia, ou não os havia ou seriam muito raros. Conversa puxa conversa, entre apicultores é mesmo assim, e quando me dirigia para a saída o Sr. Pires perguntou-me se ainda estaria no Campo de Gerês no dia seguinte. Disse-lhe que partia depois de almoço, ainda queria aproveitar a manhã para percorrer o “Trilho dos Ursos” onde esperava encontrar antigas silhas que protegiam as colmeias do ataque de tais feras.
Então deixe, que vai ter uma surpresa”, foi com estas palavras que se despediu, marcando novo encontro para depois de almoço no dia seguinte.
Depois do passeio, lá me apresentei junto ao mini mercado há hora combinada, onde encarei logo com uma boa “braçada” de palha de centeio na calçada. Estava humedecida, explicou-me depois o Sr. Pires que a molhara para se poder dobrar com mais facilidade, “é palha com mais de um ano, mas há-de de servir para o efeito”.

Percebi logo que a minha surpresa seria assistir ao vivo à construção de uma “CORPELA” (assim a designou o Sr. Pires), para proteger um cortiço.
Começou por me mostrar os utensílios que iria usar na construção da “Corpela”, como uma curiosa roda de madeira com cerca de 25 a 30 cm de diâmetro e que já era herança do avô, também apicultor, pelo que tal objecto já teria uns 100 anos ou perto disso. A roda tinha um buraco ao centro para ser enfiada num pau e tal estrutura serviria de apoio à construção.

Confidenciou-me que antigamente, a roda era montada num dos “fueiros” dos carros de bois, (os fueiros são os paus colocados verticalmente e que servem como taipais para segurar a carga, normalmente de palha).
Tal actividade era feita durante o Inverno, quando a agricultura lhes deixava mais tempo livre, aproveitando para construir as protecções dos cortiços.

Construção da Corpela
Para a construção da “Corpela” começou-se por retirar uma pequena quantidade de palha do montão original, que devia ser bem torcida de forma a construir uma espécie de corda. O facto de a palha estar molhada facilitou esta tarefa, tornando-a mais maleável e evitando que se quebrasse.

Essa “corda” serviria para atar a braçada de palha original sensivelmente a meio:

A palha assim preparada era aberta por baixo e “enfiada” no pau até o nó encalhar na roda:

Começava agora o trabalho de maior precisão: O Sr. Pires apanhava pequenas quantidades de palha da parte superior do molhe e com todo o cuidado dobrava-os para baixo. Mais uma vez, este trabalho era facilitado pelo facto da palha estar humedecida e por isso menos quebradiça.

Ia-se deslocando em redor da estrutura, apanhando gradualmente pequenas quantidades de palha e dobrando-os pelo meio, virava-as para baixo. A dobragem era feita ao nível do local onde a braçada de palha estava atada.

Valeu ainda a colaboração da Sofia (funcionária do parque), que segurava toda a estrutura enquanto o apicultor manipulava a palha de centeio.

Como resultado, a quantidade de palha da parte de baixo ia aumentando há medida que diminuía na parte de cima.

A uma determinada altura, quando a quantidade de palha dobrada para baixo já era muita, voltava a fazer-se uma nova “corda” com palha torcida e atava-se de novo o molhe ao meio. Tal acção daria mais resistência à construção e decerto a tornaria mais impermeável à chuva.
Esta etapa podia ser repetida mais que uma vez.

Uma vez atada a palha (pela 2ª vez), continuam de novo e gradualmente a dobrar-se pequenas quantidades de palha da parte de cima para a parte de baixo.

Este processo vai-se repetindo até sobrar na parte de cima da Corpela uma pequena quantidade de palha, como se fosse um “penacho”:

As últimas palhas que ficam erectas (parecem um penacho), são cuidadosamente torcidas até formar como que uma corda. Essa corda, bem apertada, é enrolada no topo da Corpela como que para “rematar” a etapa de dobragem da palha.
Pareceu-me ser um dos pormenores mais difíceis, pois convém que a “corda” fique bem enrolada e atada em torno do vértice para que não se solte. Neste caso as mãos hábeis e experimentadas do Sr. Pires fizeram tal acabamento em perfeição:


Após as dobragens da palha, o formato final da Corpela fica praticamente definido. Resta agora fixar o “cone” para que possa ser manuseado com facilidade sem que se desmanche e resista às intempéries.
Segundo o Sr. Pires, dependendo da qualidade da palha e da forma como foi construída, uma Corpela pode durar cerca de cinco anos mantendo íntegras as suas capacidades de protecção dos cortiços contra a chuva e o calor.
Para isso entram em jogo novos utensílios concebidos para o efeito: dois aros de arame com diferentes diâmetros e uma série de paus pontiagudos cujos comprimentos variam entre os 30 e os 50 cm aproximadamente.
Quando vi os paus pontiagudos ocorreu-me que o Sr. Pires fosse colocar as “trancas” no cortiço, mas de facto destinavam-se a outro efeito como veremos a seguir. Aproveitou no entanto para me dizer que naquela região as “trancas”, paus que se cruzam no interior dos cortiços, onde as abelhas fixam os favos, recebem o nome de “juízas”.

Esta fase pareceu-me bastante mais fácil, consistiu em enfiar os aros de arame no cone de palha, um mais abaixo e outro mais acima. Depois foi a mestria do Sr. Pires em enfiar os paus pontiagudos no local e nas posições mais correctas (ao nível dos aros) de modo a fixar a palha e dar maior estabilidade e resistência à estrutura.


A Corpela está praticamente terminada, resta agora retirá-la do molde e colocá-la sobre o cortiço.
Como podem ver pelas imagens, a forma correcta de manusear e transportar esta estrutura, aparentemente frágil é pegando-lhe pelos paus pontiagudos que tem espetados na parte superior.

Temos agora o nosso velho cortiço “descapotável” que vai receber um chapéu de palha, que muito o ajudará a proteger as abelhas da chuva e do calor excessivo.

Resta finalmente adaptar a Corpela às dimensões do cortiço:
Normalmente o cone de palha é demasiado grande e para tal corta-se o excesso de palha com uma tesoura de poda. Este corte não tem só objectivos estéticos, o grau de cobertura do cortiço depende também da estação do ano, dos hábitos locais e da vontade do artesão.

E está terminada a obra, abelhas e cortiço com protecção extra para a Invernada…

Segundo o Sr. Pires, havia apicultores que usavam duas rodas de tamanho diferente para a construção da Corpela, faziam-no apenas por razões de estética, obtendo-se os ditos “telhados” de palha com outros formatos, mas com igual funcionalidade.

Mas ainda haviam mais surpresas: finda a obra, o Sr. Pires ofereceu-me a Corpela para que a pudesse trazer para o Alentejo como recordação. Mas… ainda tinha cerca de 2000 km pela frente. Apesar de leve, a Corpela ocupava muito espaço e duvido que chegasse inteira ao destino, fica para a próxima.
Mas já sabem, quem passar pelo Gerês, mais precisamente pelo Parque de Campismo da Cerdeira em Campo do Gerês, e vá ao minimercado do Sr. Pires, saiba que é a “minha” Corpela que está a cobrir o pequeno cortiço que se encontra à entrada…

Um OBRIGADO muito ESPECIAL ao Sr. Pires, pela habilidade demonstrada e pela paciência e boa vontade que teve comigo, para que todos pudéssemos saber um pouco mais da apicultura praticada antigamente naquela bonita região.
Este post é dedicado a ele…

4 comentários:

Anónimo disse...

Amigo, parabens pelo seu trabalho de pesquisa e curiosidade pelo que é tradicional. Fiquei fascinado com a sua história muito embora na minha infância conheci muito bem os cortiços e as ditas corpelas. CONTINUE AS SUAS PESQUISAS!!! Fernando

Anónimo disse...

Cheguei até aqui pela imagem do "fueiro". Estava procurando a imagem por ser usada em carros de bois. Adorei as fotos e a curiosidade. A cultura de uma gente não deve ser perdida. Todas as obras de engenharia modernas devem a essa gente as suas bases. Continue sempre a resgatar e mostrar ao mundo essa cultura que fascina a muitos como eu.

Alien disse...

Olá,

Curiosamente, também só conhecia o termo "fueiro" referente aos paus nos carros de bois, de parelha e nos tractores, todos com a mesma função.

J Pifano

votonocontrato disse...

obrigado era exatamente isto que eu estava procurando. Parabéns