24 dezembro, 2011

Apicultura 2050, uma história de Natal…

Cinco de Junho de 2050, uma nuvem de pó avermelhado e tóxico denuncia a nossa chegada ao apiário. A temperatura às sete da manhã já ronda os 45º C e tudo aponta para um dia fresco.

Viemos pelo ar, aliás, seria impensável fazê-lo de outra forma. A moda do pagamento de portagem nas SCUT’s estendera-se às restantes vias, nem as estradas municipais ou os caminhos de cabras escaparam à regra.

Não era para menos, a crise atingia agora números impressionantes e era preciso pagá-la. Portugal, depois de ter esgotado todo o arsenal de submarinos a boa parte dos países do Norte da Europa, empenhava-se agora em adquirir helicópteros e outros meios de transporte bélicos.

Ao menos os helicópteros não pagavam portagem, aterravam em qualquer lado e os apicultores faziam bom uso deles.

Aguentei-me mais uns instantes na cabine, à espera que a poeirada venenosa assentasse por completo, enquanto no rádio se ouviam os últimos acordes do mais recente sucesso do Bobby Carreira. Um cachorro pelo de arame, pertença do conhecido “artista” que pôs toda a família a cantar, e aquele era o menos mau, incluindo o dono.

À chegada, coisa curiosa, entretivemo-nos a observar um casal de abelharucos que piava alegremente pousado no arame farpado que cercava o apiário. Julgávamo-los extintos há mais de uma década, mas estes dois escaparam à hecatombe.
Logo assomaram à entrada de uma colmeia três ou quatro abelhas de reflexos metálicos, que num ápice se lançaram às pobres avezinhas. Sobrou um punhado de penas multicores que voavam ondulantes ao sabor da brisa, a única coisa colorida que nos estaria reservada para esse dia.

Malditas bestas, decerto já esqueceram o tempo em que dependiam de tudo e mais alguma coisa, quando carinhosamente as poupamos à Varroose e a tantas outras provações. A ingratidão deixara de ser uma característica exclusivamente humana e agora animava as relações entre os diversos seres vivos.

Passamos então a ajustar os equipamentos de titânio com máscaras de acrílico à prova de bala e activamos os fumigadores atómicos. Nunca pensei que o urânio substituísse a bosta de vaca na nobre função de pacificar as abelhas. Até porque “pacifismos”, bosta de vaca e urânio radioactivo acabam por ser lados distintos da mesma moeda…

Abelhas geneticamente modificadas, coisa pouca, “só” lhes substituíram o exoesqueleto de quitina por uma carapaça de ferro, fora os efeitos colaterais: ficaram mais agressivas. Pessimismos à parte, ao menos conseguiu-se controlar a Varroose, e o único receio agora era que as abelhas enferrujassem.

E que espectáculo deprimente era vê-las na tábua de voo a chiar que nem molas de colchão velho.

Valia-nos mais uma vez (e sempre) o Programa Apícola Nacional, agora sob a alçada do Ministério da Defesa e com ajudas à compra de óleo lubrificante que nem precisava de ser homologado. Tudo servia, desde o óleo queimado usado nos motores até ao das batatas fritas.

As almotolias passaram a fazer parte do nosso estojo apícola.

Entidades como o GPP ou o IFAP, quais santuários edificados ao acordo de Kyoto, eram a linha da frente do ambientalismo e da conservação da Natureza. E não era para menos, ou não se lembrassem eles de doar para a reciclagem as pilhas de relatórios mensais, semanais, anuais, trimestrais, diários e outros tais, escritos pelos técnicos de apicultura ao longo de mais de seis décadas.

Nunca mais se abateu uma árvore para fazer papel, até porque já poucas havia…
Mas deixemos isso porque hoje era o dia da cresta. Ao contrário de outras épocas, o dia mais odiado pelos apicultores:

Já não se produzia mel, ou pólen, ninharias do passado. Agora as abelhas recolhiam nas flores os metais pesados, resíduos de pesticidas e todo um rol de porcarias com as mais diversas aplicações militares.

Nunca a apicultura passara por tempos tão prósperos. Não havia potência em estado marcial ou celulazinha terrorista que não nos garantisse o escoamento total da produção.

Há quem diga, mas ignoro a fonte, que meia dúzia de fanáticos fundamentalistas ainda guardam umas quantas colónias da Apis mellífera original, essas abelhinhas maricas do passado, que produzem um mel docinho, puro e até caseiro, imagine-se.
E perguntamos oportunamente: para quê?, se já nem tofina havia para lhe aproveitar os frascos.

Vá-se lá convencer alguém a carregar uma ogiva para um míssil balístico intercontinental com um monofloral de rosmaninho… E depois? Espera-se 50 ou 60 anos que os alvos morram de diabetes?

A cresta do futuro? Coisa simples:

Aproximamo-nos cuidadosamente das colmeias e aplicamos-lhe uma descarga de 100.000 volts com o alicate levanta quadros, agora com outras funções. O líquido verde que escorria pela tábua de voo augurava uma boa produção, paladares estragados esses que não sabem apreciar um bom monofloral de neonicotinóides.

Pediam-nos para não abusarmos muito do fumigador, os produtos da colmeia ficariam demasiado brilhantes quando colocados às escuras e a clientela mais susceptível acabava sempre por torcer o nariz. Até porque depois de uma boa colherada deste mel, a única coisa que aguentaria uma torção seria mesmo o nariz…

Não riam, mas no último concurso de mel que foi possível realizar, os elementos do júri foram aposentados compulsivamente por não lhes conseguirem descolar as colheres de plástico da língua. Acentuem-se lá os aspectos positivos: nunca mais gastaram um avo em radiografias, apaga-se-lhes a luz e a anatomia de cada um surge-nos tão mais psicadélica e completa quanto mais mel ingeriram.

Lá vinha o primeiro ataque de abelhas campeiras, estas escaparam aos efeitos sedativos do fumigador nuclear. Embatiam com tal violência nos nossos equipamentos que mais pareciam uma descarga de metralha.

Só os técnicos de apicultura, com passagem curricular e obrigatória pelo corpo de comandos, tinham estômago para esta actividade. Eram agora e por isso tratados como cidadãos de primeira.

Mesmo assim sofríamos pesadas baixas. Qualquer abelha que se esgueirasse por uma frincha imprevista, causava-nos uma sensação semelhante à que há-de sentir qualquer pedaço de madeira atacado pelo caruncho. Tal distracção acabava inevitavelmente nas urgências, ipsis verbis, na urgência que os sobreviventes tinham em livrar-se da carcaça…

Mas continuávamos espíritos alegres e folgazões, ninguém se negava à nobre causa da apicultura. As associações do sector recrutavam a rapaziada sobretudo nos centros correccionais, hooligans, arrombadores e outras enormidades.

Querem agora saber como é a criação de rainhas, os desdobramentos e o controlo de enxameação das abelhas do futuro?

Porque não perguntam ao Coelhinho da Páscoa? Ou ao Pai Natal?...

E que por falar nisso vos desejo um FELIZ NATAL 2011.

Desta vez passa, ou não (?), mas continuem sem reivindicar para o sector toda a importância e dignidade que lhe é devida. A permitir que o ambiente seja tratado como uma estatística ou uma mera fonte de rendimentos de forma insustentável e dentro em breve, se quiserem ver abelhas só no Museu de História Natural…
Bem hajam

14 comentários:

octávio disse...

Simplesmente espectacular. Parabéns à imaginação.

Alien disse...

O montedomel deseja um FELIZ NATAL a todos os colaboradores, visitantes e amigos!!!

abraços
Pifano

Κώστας Ελευθεριου disse...

Χρόνια πολλά και καλά Χριστούγεννα απο την πολύπαθη Ελλάδα φίλε μου.

Alien disse...

Καλά Χριστούγεννα
Ευτυχισμένο το Νέο Έτος

Μια αγκαλιά!

Malijo disse...

Parabéns pela magnifica historia :)

Cump

Malijo

António Sérgio disse...

Feliz Natal Monte do Mel!

José Baptista disse...

Cabecinha pensadora!....
Boas Festas Monte do Mel!

Eco-Escolas disse...

A melhor história de Natal que já li.
Grande escritor.
Continuação de boas festas para os bons e já agora porque não também para aqueles que a fazem pela calada. Sabes de quem estou a falar, Quim? Sabes sim senhor.

Abraço Grande

Marques

mel fonte nova disse...

amigo Pifano pelo jeito da prosa ou muito me engano ou dentro algum tempo temos livro nos escaparates de uma qualquer livraria perto de nós , jeito tem ,tempo não sei mas .... com jeito tudo se faz.
um bom ano novo são os votos do MEL FONTE NOVA

Adelino Ramos

LOPES disse...

Parabéns!.
Como aliás já foi dito:
SIMPLESMENTE ESPECTACULAR!
Boas Festas!

Manuela Miguel disse...

Parabéns esta espectacular.
Adorei, repito aquilo que já te disse algumas vezes, tens o dom de escrever, aproveita.
Estarei na fila à espera de um autografo.

Bjs

Anónimo disse...

Fantástico !
Um bom ano de 2012 para todos!
Abelhasah.

Anónimo disse...

Um texto brilhante!
Que as Abelhas, a Natureza e o Homem comecem a falar a mesma língua!
Porque não começar já em 2012?
Um abraço a todos!
Eduardo Gomes

Rosmaninho disse...

Parabéns pelo artigo, sem dúvida é preciso imaginação! Esperemos que o futuro seja um pouco mais risonho... e porque não qq coisa como "Em 2050 a sociedade despertou para a importância que as abelhas têm no Mundo, tendo a apicultura sido extremamente valorizada... os apicultores tornaram-se pessoas muito valorizadas e respeitadas... ganhando rios de dinheiro, pelos importantissimos serviços que prestam à manutenção Natureza... etc, etc" Um abraço e um bom ano com boas produções
João Tomé
valedorosmaninho.blogspot.com