Todas as manhãs a
gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta.
Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela
ou morrerá de fome.
Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol
desponta o melhor é começares a correr.
Provérbio africano, retirado de “A
confissão da leoa”, de Mia Couto
Poucas imagens da vida selvagem
suscitam tanto dramatismo como um leão a caçar uma gazela nas pradarias
africanas. São presas e predadores de grandes dimensões, à nossa escala, as
vidas em jogo, os ruídos da luta, o sangue a escorrer e a carne a rasgar ferem
a nossa humana sensibilidade.
No entanto, mesmo a escalas mais
reduzidas como ao nível dos insectos, as relações presa-predador revelam
momentos tão pungentes como os do exemplo anterior. Apenas a maior parte da
acção nos escapa ao olhar e por isso somos levados a supor que tudo decorre com
mais suavidade e recato.
Há poucas semanas encontrava-me
no campo com um amigo que tinha instalado o seu primeiro apiário com três
colmeias. Observava-mos numeroso grupo de abelhas que regressavam à colmeia
carregadas de pólen, quando um ruidoso voo de insecto nos chamou a atenção.
Cedo identificamos a Vespa crabro de
grandes dimensões que circundava o local atraído pelas abelhas recém-chegadas.
É curioso como a maior parte das
abelhas que voavam nas proximidades depressa se refugiaram na colmeia e
passaram a guardar a entrada, atentas a tudo o que se desenrolava no exterior.
Não imaginava que tais vespas
tivessem no apiário um efeito semelhante ao provocado pela presença e pelo
canto dos abelharucos: manter a maior parte das abelhas em sentido à entrada e
com uma notória redução do fluxo de insectos.
Baldadas as tentativas de
capturar as abelhas que partiam ou regressavam por parte da enorme vespa, uma
vez que esse movimento cessou quase por completo, o predador iniciou então uma
série de voos e aproximações provocatórias à entrada das colmeias. Pretendia
com isso estimular o ataque de alguma abelha mais temerária, isolá-la do grupo
e lançar-se sobre ela.
Vimo-la passar em voo rasante
frente à entrada das colmeias e toda a guarda avançada das abelhas acompanhava
o movimento da vespa mudando de posição. Noutras vezes aproximava-se a escassos
centímetros das abelhas ficando a pairar uns instantes no local, o que fazia
com que as potenciais presas avançassem ligeiramente na sua direcção.
Setas amarelas - Posição da Vespa crabro a pairar frente às abelhas.
Setas vermelhas - Posição de uma abelha que seguia nervosamente todas as movimentações da vespa, reparem como ela altera a sua posição consoante o movimento da vespa.
Essas vespas surgiam com a
frequência de um ataque a cada dez ou quinze minutos e todas as tentativas eram
bem-sucedidas.
Quase se sente a tremenda tensão
que paira nesta selva em miniatura, o voo frio e calculista da vespa, os
avanços e recuos a medo da defesa das abelhas, o inimigo mortífero ali tão
perto. Dava qualquer coisa para saber se ambos, presas e predadores, têm alguma
consciência do sucesso de tais ataques e por isso da inevitabilidade de a todo
o instante uma das abelhas perecer na defesa de uma causa que face às
evidências parece perdida. Mesmo assim não desistem do sacrifício individual pela
causa comum.
Logo que o predador conseguia
isolar uma abelha, rapidamente a alcançava em voo agarrando-a com as patas e as
mandíbulas. De seguida pousava num ramo da árvore mais próxima e despedaçava-a.
Na imagem do canto inferior esquerdo a abelha já não tem a cabeça.
Desembaraçava-se das asas e da cabeça e segundo as referências mastiga toda a
parte muscular cuja massa é levada para o ninho onde alimenta as vespas em
estado larvar. Segundo as mesmas referências apenas os insectos em estado
larvar são carnívoros, as vespas adultas alimentam-se de néctar.
Numa dessas vezes vimos como a enorme
Vespa crabro capturou uma abelha em
voo, perdendo altitude e quase se estatelando as duas no solo. Recuperava de
novo altitude quando outra pequena abelha, talvez injectada de coragem por ver a
situação crítica em que se encontrava a irmã, se lança a tremenda velocidade
sobre os dois insectos e os derruba por terra. Foi uma imagem alucinante,
parecia um autêntico míssil lançado contra uma aeronave.
Foi nessa altura que uma providencial
ramalhada de esteva pôs fim à contenda. Não foi lá muito ético nem científico,
mas precisávamos de imobilizar uma vespa para a fotografar.
Por outro lado tinha ficado algo
intrigado com o comportamento extremamente defensivo das abelhas à entrada da
colmeia por causa da proximidade da vespa, pelo que resolvi coloca-la quase
morta na tábua de voo e o ataque das abelhas não se fez esperar. Rapidamente a atacaram
e expulsaram para longe quando se certificaram que já não constituía qualquer
ameaça.
É visível o ferrão da abelha no canto superior direito.
Na imagem superior vêem-se as abelhas a bater as asas para dispersarem alguma hormona de alarme.
Enquanto umas abelhas atacam o intruso, as restantes fazem a defesa do perímetro com uma curiosa formação em semi-circulo.
Já com a vespa expulsa da tábua de voo, as abelhas deixaram de atacar mas mantiveram-se nas proximidades...
Noutro dia o Paulo seguiu o voo
dessas vespas e conseguiu encontrar o ninho num buraco de numa pernada de
Sobreiro, estava a cerca de quatro metros de altura e a uns 400 a 500 metros
distante do apiário.
Aproximamo-nos bastante e as
vespas pouca ou nenhuma agressividade demonstraram, creio, mas não me
responsabilizo, que deve ser a espécie de vespas menos agressiva que conheço.
Entretanto víamos chegar ao local
dezenas de vespas vindas de todas as direcções, pousavam nas árvores e arbustos
em redor trazendo abelhas, vespas de espécies menores e outros insectos.
Algumas Vespa crabro circulavam pelo
tronco recém-descortiçado do Sobreiro onde tinham o ninho e pareciam estar a
arrancar pedaços de fibras com as enormes mandíbulas. Talvez usem essa
matéria-prima depois de bem mascada e misturada com saliva para erigirem os
alvéolos de celulose com que constroem o ninho.
São animais fantásticos, são com
certeza uma peça chave no equilíbrio ecológico dos ecossistemas em que se
encontram. Decerto que os apicultores não apreciam a sua actividade predadora
de abelhas, mas estas serão sem dúvida uma percentagem mínima da imensa
quantidade de insectos que as vespas capturam.
Nunca tinha registado um
desequilíbrio nas populações de Vespa
crabro como no ano passado, 2013, pelo menos segundo os apicultores com
quem falei. Por qualquer razão nesse ano as fêmeas férteis terão sobrevivido e
tido sucesso em tal quantidade que na maioria dos apiários da região se
registaram ataques desse predador. Podemos afirmar com muita certeza que se
tratou de um caso isolado, pois durante todo o mês de Setembro deste ano e até
à data, raros são os casos registados de ataques dessas vespas a apiários.
Mesmo em anos anteriores essas ocorrências foram sempre muito raras.
Por outro lado estas vespas são
de tal forma ariscas e discretas, evitando áreas urbanas, que não passam de
meras desconhecidas para maioria das pessoas, mesmo para trabalhadores rurais
que passaram a vida nos campos. Trata-se no entanto de animais que pertencem à
nossa fauna autóctone, convivendo connosco à distância mas há milhares de anos.
Os ataques por elas perpetrados
são sem sombra de dúvida um caso clássico de “ocasião que faz o ladrão” e quem
proporciona essas ocasiões é o péssimo ordenamento que temos na nossa apicultura.
As circunstâncias que potenciam o ataque destas vespas são exactamente as
mesmas que facilitam o ataque dos abelharucos, do ácaro Varroa destructor e de tantos outros inimigos das abelhas.
Já regressávamos a casa por um
caminho ermo de terra batida quando encontramos uma das mais simpáticas e
curiosas aves nocturnas da região – o Noitibó, pousado no meio da estrada.
Encetamos uma série de tentativas
para a fotografar de longe, não fosse a ave fugir com a nossa presença.
Consegui depois aproximar-me lentamente, cheguei a rastejar no chão até me
aproximar o suficiente para conseguir as imagens que agora partilho convosco.
Eu a uns escassos centímetros de um Noitibó, eu sou o que está com calças de ganga...
Para um final em apoteose ainda tentei
fazer o que seria sem dúvida a primeira selfie com um Noitibó. Cheguei
suficientemente perto para o efeito, mas quando tentei passar-lhe o braço com a
máquina fotográfica pela frente a esquiva ave terá achado um abuso de confiança
e fugiu no seu característico voo vertical.
4 comentários:
Boa tarde
Há muito tempo que acompanho o seu blog e para mim tem sido uma fonte de ensinamentos.
Obrigado pelo seu trabalho.
O cenário descrito relativamente aos ataques da vespa crabro é o mesmo que nós, aqui pelo Minho, encontramos com os ataques da vespa velutina. No entanto, acrescento que a gravidade é muito maior dado a quantidade de ninhos que se vão descobrindo, o número elevado de indivíduos que cada um alberga e a quantidade de vespas a rondar as colmeias. Para além disto, aparecem também algumas crabro misturadas com as velutinas.
Em certos dias observei que as abelhas que estavam na tábua de voo, com comportamento defensivo, eram atacadas pelas vespas que pousavam na mesma e, passado algum tempo, acabavam por recolher ao interior da colmeia.
Este cenário vai-se espalhando, aos poucos, a todo o país sem que as autoridades competentes façam alguma coisa com sentido para minimizá-lo.
Concluindo, o ano apícola foi mau, as abelhas foram impedidas de se aprovisionarem para o inverno pelo tempo e pelas vespas que as atacavam nas colmeias e nas próprias flores ou frutos onde costumam trabalhar e, por isso vou ter que passar o inverno a alimentar os enxames.
No próximo ano o cenário vai-se repetir, por isso não sei se vale a pena continuar.
Olá Carlos Fernandes,
Acredito que os ataques da Velutina sejam bastante mais graves, trata-se afinal de uma vespa exótica que encontrou por cá condições muito boas para se desenvolver e está a avançar a toda a força.
As "autoridades competentes" são de facto um conceito surrealista no panorama apícola, e não apenas no referente à V.velutina, infelizmente.
Eu tenho acompanhado os vossos esforços para debelar essa praga, aliás os meios de comunicação têm dado importante cobertura ao problema.
Já me disseram ser pouco provável que essa vespa chegue ao Sul de Portugal, mas acredito que mais dia menos dia ela por aqui surja e é mais um problema a somar aos outros.
Aqui no Sul até dá para fazer apostas a ver quem chega primeiro, se a Vespa velutina se a Aethina tumida, na volta vão cruzar a meta de mãos dadas...
Abraço
Joaquim Pifano
Vou começar por dizer que descobri hoje o seu site, através de pesquisas que fiz sobre as vespas crabro e adorei o seu blog.
Desde há tempos que "descobri" as abelhas e fiquei fascinada! As abelhas não significam apenas mel e picadas, mas muito mais. Adoro ficar sentada a observá-las.
Há uns dias atrás descobri um ninho de vespas crabro dentro de um castanheiro, e fiquei a observá-las, espero ter tempo de lá voltar, sobretudo depois do que li por aqui, voltarei com uma nova "visão"/informação sobre elas.
Certamente que visitarei este blog muito mais vezes.
Obrigada pela partilha.
Olá "Paparoca"
Fico então a aguardar pelas novas observações que decerto conseguirá sobre as Vespa crabro, volto a referir que me parecem animais formidáveis.
Eu refiro no texto que não serão muito agressivas e já ouvi outros comentários semelhantes, mas tenha cuidado elas têm um ferrão enorme e podem aumentar a agressividade na proximidade do ninho.
Se tiver disponível um equipamento de apicultura essa actividade será muito mais segura, podendo inclusivamente aproximar-se para tirar fotos.
Outra forma muito fácil (e barata) de observar abelhas, solitárias neste caso, é a construção de um ninho para polinizadores.
Pode consultar este post do montedomel:
http://montedomel.blogspot.pt/2009/10/ajudem-os-polinizadores-ajudar-nos.html
ou outras referências na web.
Cumprimentos,
Joaquim Pifano
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