Se esta notícia tivesse sido escrita por Emílio Salgari ou por Júlio Verne, decerto se chamaria “A Maravilhosa Aventura de Sérgio na Apicultura Escocesa”.
Digo-o pelo encanto que deve encerrar tal empreendimento, tal como da iniciativa de um jovem e pacato português de 25 anos.
Todos conhecemos o António Sérgio, quer pelo amor que nutre e partilha pela causa apícola, como pela sua omnipresença em tudo quanto são acontecimentos do género. Não há apicultor ou técnico que não tenha tido já o prazer de trocar umas impressões com ele.
Ao contrário dos tempos de Verne e de Salgari, os stresses da idade da informática precipitam estas coisas a uma velocidade alucinante: “decidi em dois ou três dias, e menos de uma semana depois do primeiro mail já estava a sair do avião em Edimburgo, a 13 de Maio...”
À pergunta acerca dos principais objectivos de tal viagem, recebi simultâneamente a resposta mais lacónica e esclarecedora que jamais ouvi:
“ Há comboios que só passam uma vez na vida!”
O que mais o impressionava, visto do avião, era a paisagem verdejante cá em baixo, as casas, as quintas, os campos e sobretudo imensas manchas de um amarelo muito intenso que logo calculou tratar-se de Colza.
A Colza é uma oleaginosa muito cultivada e com excelentes características para a produção de mel.
E à chegada, não te sentiste "esmagado" por uma exploração apícola tão grande (p'ra um pequeno apicultor)?
“esmagado” não senti, mas percebi de imediato que se tratavam de apiculturas e realidades muito diferentes das que eu estava habituado”
Em jeito de graça disse que o impressionou bastante o “contacto” que o aguardava no aeroporto. Um indivíduo com aspecto de “bárbaro”, calças militares, camisola de alças, cabelo longo e ondulado, mais parecia um guerreiro saído das épicas batalhas dos clãs escoceses de outrora...
Já em casa e a recebê-lo, uma equipa muito internacional, além do patrão (apicultor escocês), um colega da Polónia e outro da Estónia, com dezoito e vinte e um anos, respectivamente: “trocámos logo experiências, era um pessoal muito aberto e porreiro...”
Ainda surgiu outro colega da Alemanha e outro da Lituânia, um verdadeiro “congresso de nações”.
Nessa fase, boa parte dos apiários encontrava-se a polinizar e a produzir nos campos de Colza, apesar das condições climatéricas não serem as mais favoráveis. A primeira missão para o nosso jovem “aventureiro” foi precisamente a deslocação de colmeias dos apiários mais numerosos para a polinização de culturas de morangueiro e framboesas, a pedido dos agricultores. Estes tinham muita sensibilidade para a importância das abelhas não só nas suas culturas em particular, como no ambiente em geral.
Refere ainda que tal transumância ocorreu durante o dia, frio e chuvoso, o que mantinha as abelhas “sossegadas” nas colmeias.
“Na Escócia, as colónias de abelhas passam um Inverno difícil, com recurso a muito alimento artificial: xaropes de frutose, tipo Apinvert”.
As condições climatéricas são muito inconstantes, chove muito, o que não lhes permite tirar grande partido da Colza, cuja floração não dura mais que duas a três semanas”.
Outra das funções de que fora incumbido era a de fazer desdobramentos sempre que encontravam alvéolos reais nas inspecções às colmeias.
“Só quando as colmeias se encontraram mais equilibradas em termos de população/criação é que fizemos desdobramentos de uma forma mais intensa: recorrendo à criação de rainhas”.
Agora um aspecto que achei particularmente curioso: os desdobramentos que fizeram eram demasiado tardios para se fortalecerem na Colza e ainda era demasiado cedo para a Urze.
Acontece que os agricultores locais, sensibilizados para a causa apícola, semeiam nas bordaduras dos terrenos de cultura (ex: batatal), normalmente naqueles locais onde o tractor faz a manobra de inversão de marcha, com uma espécie vegetal muito curiosa: a Facília.
Segundo o António Sérgio, a Facília, tem uma função semelhante à das leguminosas, pois acaba por fertilizar o solo onde é semeada. De referir que é o apicultor que compra e fornece a semente de tal planta: parece justo...
A flor da Facília na bordadura dos terrenos de cultura, dura duas a três semanas e é responsável pelo dimensionamento das jovens colónias feitas durante a estadia na Colza.
Pelo grande (e complexo) aparato ligado à produção e ministração de alimento artificial, deve ser uma prática comum na Escócia, ou pelo menos nessa região, que condições se verificaram para que tal se justifique?
“aconteceu numa fase em que já não havia flor da Colza, mas as colmeias continuavam no mesmo local, e o tempo estava sempre de chuva ou nublado, não permitindo ás abelhas saírem e procurar alimento”
e ainda não havia a flor da Facília...
“a “coisa” agravou-se tanto que quando abria-mos a colmeia só encontrava-mos abelhas e alguma criação, nem uma gota de mel ou pólen nos favos, até a rainha diminuiu postura. Os campos de Facília são poucos, e a sua área é sempre reduzida. Os que haviam estavam destinados aos desdobramentos...”
Chamou-me a atenção o equipamento para o fabrico de alimento artificial: um grande depósito com um misturador de hélice que homogeneizava a água com o açúcar (1:1). A mistura era depois transferida para depósitos de 1000 kg e transportados até às colmeias.
Junto aos apiários, um operador colocava um punhado de palha no alimentador artificial (para as abelhas não se afogarem) e só depois adicionavam o xarope doce. Consoante a população de cada colónia aplicavam-se cinco a sete litros de cada vez.
Finalmente, a “grande operação” de transumância para a Urze nas Montanhas...
“começá-mos a deslocar colmeias para a Urze a partir de 18 de Julho, com o total do efectivo, menos os desdobramentos mais tardios (...) 3 pessoas (duas na fase final), um camião Unimog, um Range Rover com atrelado e 500 a 600 colmeias a caminho das montanhas, (...) evitavam-se as deslocações nocturnas nas Montanhas, pois se houvessem problemas era muito mais difícil pedir ajuda.
Pelo que saíamos de casa às 3:00 da manhã (ainda escuro) e chegávamos aos apiários quando começava a clarear (...) encerrávamos todas as colmeias com esponja, depois carregava-mos e colocava-mos as cintas de aperto para as caixas não oscilarem, e isto tudo com a luz do nascer do Sol e sem haver abelhas na rua”
Que distâncias faziam entre os locais de Inverno e a Urze nas Montanhas?
“As colmeias não foram todas para a mesma Montanha, fizeram-se distâncias entre os 70 e os 150 km para “jogar” com os microclimas. Entre o condado de Angus (origem) e Perth e Kinross (os destinos), (...) se não me falha a memória, deixá-mos colmeias em 3 cadeias montanhosas, todas elas com a sua particularidade floral, seja no tipo de Urze seja no arranque da floração. Faziam-se assentamentos com cerca de 50 colmeias, por vezes à distância de dois km uns dos outros...”
E as produtividades na Colza, Facília e na Urze ?
“Na Colza, e para a minha experiência, foram médias a baixas, cerca de 10kg/colmeia. Na Facília nem se fez cresta, pois o objectivo era fortalecer os tais desdobramentos mais tardios.
No entanto, ouvi falar em anos que se levaram colmeias muito fortes para esta cultura e obtiveram-se grandes produções. A conclusão final é que as condições meteorológicas é que mandam no apicultor...
A colheita da Urze foi posterior ao meu regresso a Portugal, mas ainda acompanhei situações de muito mau tempo em que as abelhas chegavam a expulsar ninfas para o exterior e outros casos em que se teve de colocar um segundo corpo sobre o ninho.”
Já devia ter perguntado, mas que raça(s) de abelhas e tipo(s)/modelo(s) de colmeis utilizavam?
“ A abelha negra europeia, e colmeias Langstroth de esferovite. Além destas usávamos também o modelo “Smith”, em madeira, (semelhante às nossas Reversíveis – com alça igual ao ninho).
Por curiosidade também se usavam (uma minoria) de colmeias modelo Nathional, com quadros muito iguais aos Smith, só que com as “orelhas” mais compridas. Trata-se de uma colmeia tradicional do Reino Unido.”
Sanidade Apícola: Que doenças “encontras-te” por lá e como as combateram ?
“Sobretudo a Ascosferiose e a Loque Europeia, moléstias potenciadas pelo tempo muito húmido e pela irregularidade na entrada de nutrientes, nunca lhe aplicamos qualquer tratamento.
Também havia alguma Varroa e casos raros de Loque Americana”
Nessas já aplicaram medicamentos...
“A Varroa era tratada no início do Inverno. Logo após as colmeias virem das Montanhas e usava-se um medicamento á base de flumetrina.
Com a Loque Americana o procedimento era diferente, só se aproveitavam mesmo as colmeias. De resto: abelhas, ceras, quadros... ia tudo para a fogueira”.
Para terminar, e muito sumariamente, que trabalhos fazias na Melaria? Além do que já vimos no excelente vídeo que me ofereceste...
“Desde a extracção do mel, encher os frascos, até á ultima fase da rotulagem e despachar as paletes com os frascos para os camiões da transportadora...”
O Sérgio não me contou, e eu também não perguntei, mas consigo calcular as saudades e a imensa vontade que ele já deve ter em regressar à Escócia...
Joaquim Pifano
Já à hora do "fecho da edição" ainda pedi ao António Sérgio que nos revelasse o "ponto alto" da sua experiência com a apicultura escocesa, ao que ele respondeu:
Acho que toda a minha estadia foi um momento alto, tenho saudades e muito boas memórias, desde contactar com pessoas de várias nações e culturas à descoberta da cultura escocesa e um pouco a sua história.
Não esqueço também o 1º dia de transumância para as Montanhas, depois de encerrar e carregar 70 colmeias á força de braços e com a chuva a fazer-nos companhia. Fizémo-nos à estrada com a ideia de que iria ser um dia longo e esgotante, no entanto quando começo a avançar no interior das montanhas era cada vez mais bela e selvagem a paisagem que nos rodeava, as encostas já com a urze florida, grupos de veados, ribeiros com água do degelo do topo das montanhas, enfim apenas se ouvia o cantar da água nos ribeiros e o vento que soprava no alto das montanhas.
Era pouca a presença humana naquelas paragens, todas estas sensações que pude experimentar fizeram-me carregar baterias e no final disse para comigo mesmo "- se calhar aqui a transumância não é o pior dos trabalhos - ".
Há uma ideia que muitas vezes me passou pela cabeça e que julgo ser bom partilhar: em Portugal temos excelentes condições meteorológicas e ambientais para a Apicultura, isto comparando com a Escócia, o ultimo ano bom na Escócia foi em 2006 com boas produções na Colza e Urze (mel bem valorizado no mercado) nos ultimos anos devido ás condições climatéricas adversas, chuva, frio (um dos primeiros ensinamentos que recebi dos meus colegas escoceses foi que um scotish day é um dia de chuva).
27 setembro, 2009
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8 comentários:
Bem mas que grande aventura apícola!
Ser Apicultor deve ser uma profissão muito dignificante em terras inglesas, pena que por cá não seja sempre assim e ainda não se dê o devido valor ao noso trabalho.
Espero que este tipo de aventuras se repita e que estejamos cá para assitir a mais uma reportagem do nosso colega Pífano!
Abraços
Hugo
Bom dia,
Não posso deixar de referir que não há palavras para descrever a Escócia, local onde já tive o privilégio de estar e trabalhar por razões fora do âmbito da apicultura, no entanto a melhor palavra para descrever esta aventura do amigo António Sérgio é a palavra "Maravilhoso". Obrigado Joaquim pela reportagem e obrigado António pela disponibilidade...
Abraço,
Cristóvão
Essa paisagem é de encher os olhos, coisa magnífica.
att,
Kalhil
Excelentes fotos.
Bonita experiência vivida.
Parabéns e grato por esta partilha.
Citando o António Sergio:
- “ Há comboios que só passam uma vez na vida!”
Maravilhosa aventura!
Um abraço
Bem... realmente já está tudo dito por quem comentou antes de mim, é uma aventura em pêras, vivida ao rubro, com a abelha pendurada na camisola.
Amigo e Mestre Pìfano, parabéns pela pequena reportagem, parece tirada dos moldes da National Geografic, daquelas que são tão boas, tão repletas de vida como de entusiasmo, aquelas que ficamos tristes quando chega o final.
Contudo e aparte tenho uma duvida, nos casos de Loque, foi referido que só se poupava as colmeias de resto era tudo queimado(...) fico intrigado por essa prática, já que as colmeias são de esferovite e não podem ser chamejadas a maçarico.
5*****, nota 10
Abraços e Ferradelas ao Sérgio e ao Pífano
Caríssimo Mário,
Não se podendo queimar com maçarico, acho que se pode tratar com desinfectantes químicos inertes ao esferovite... não sei se a lixívia será eficaz nessa situação, talvez...
Grande Abraço
JPifano
Amigo Mário
As colmeias de esferovite quando era necessário desinfectá-las era utilizado um produto em pó (que agora não me lembro o nome, mas tinha-mos que usar luvas e óculos de protecção pois era um quimico muito forte) aplicado numa tina cheia de água onde eram depois mergulhadas as colmeias de esferovite durante alguns segundos depois era só deixar secar e estavam prontas a voltar ao campo já que o desinfectante não deixava muito cheiro nas caixas.
Cumprimentos, António Sérgio
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