08 março, 2012

8 de Março - Dia da Mulher, apicultora

Atrás dos montes e para lá do tempo, num dos locais mais ermos que já visitei, até de carro é difícil a aproximação à remota mas bonita aldeia transmontana.

O relevo caprichoso dobra a paisagem em vales e colinas pontilhadas de oliveiras, blocos de granito e amendoeiras em flor. O mato também abunda, local privilegiado para a apicultura onde a mancha de rosmaninho é garante de boas produções.

À nossa espera, Bernardete de Lurdes Valente, septuagenária de sorriso sincero, cujos traços deixam adivinhar uma coragem e ousadia de que poucos jovens se podem gabar.
Estava na melaria, provavelmente a divisão da casa onde passa mais tempo, ou não fosse ela um dos maiores produtores de mel da região. Curiosa a presença de pequeno aparelho de televisão em tal dependência, companhia de excelência para as longas horas que passa na extracção do doce néctar.

Conheci-a na véspera, nas Jornadas de Apicultura da Terra Quente. Participante assídua em tais eventos, “só não vou quando não tenho transporte”, Bernardete Valente anseia, procura e partilha novos conhecimentos, possuindo um espírito aberto e sem preconceitos para assimilar as novidades do sector e que lhe permitem uma actualização constante da exploração.

Surpreendem tais características numa idade conotada com actividades mais resguardadas no conforto do lar, talvez a tricotar junto à lareira com um gato a dormitar aos pés.

Trocou no entanto as agulhas pelo formão de apicultor, o gato pelas abelhas e fez-se à estrada em direcção aos apiários. E fê-lo literalmente, sem outro modo de locomoção calcorreia a pé vários quilómetros por dia, subindo e descendo por caminhos íngremes de terra batida cortados entre as penedias. Mochila às costas, onde carrega o equipamento e demais utensílios, vai de apiário em apiário onde trata as abelhas com o mesmo carinho com que uma mãe vela o sono de um filho.

Talvez o “pormenor” mais insólito na vida apícola de Dª Bernardete é o facto de se deslocar em tais caminhos pelo seu próprio pé e sem outra companhia que não seja a sua sombra.
Valem-lhe os sobrinhos que a ajudam nos dias de cresta ou na limpeza dos apiários, trabalhos mais duros e de todo impossíveis de realizar por uma septuagenária.
Desta vez, como os sobrinhos estão longe, pagou o frete de uma carrinha para que lhe transportassem o alimento das abelhas e lho depositassem num local estratégico de onde depois o distribuiu pelos apiários.

No entanto, na época dos enxames em que as visitas são diárias, ou noutras tarefas do maneio apícola, é vê-la sozinha nas labutas do apiário.

Não pude deixar de lhe dizer que nas associações de apicultores onde exerço ou já exerci assistência técnica, o que mais aconselhava aos apicultores, homens, é a necessidade e quase obrigação de se fazerem acompanhar por outra pessoa quando visitam as colmeias.

Os acidentes de trabalho são muito comuns entre os apicultores, trata-se de uma das regras mais básicas, ainda por cima a actividade é praticada em locais isolados no campo.

Respondeu-me com um “… pois, mas eu não tenho companhia”.

Confrontei-a com o facto de ser uma mulher numa actividade principalmente praticada por homens, questionando-a sobre como reagiam as pessoas da aldeia. Riu-se com a pergunta e disse-me que já estavam habituadas, ainda outro dia uma vizinha gracejava dizendo “lá vai a Bernardete para o seu emprego…” e na aldeia os clientes procuram-na como “a senhora do mel”.

Perguntei-lhe se em tais deambulações solitárias alguma vez apanhara um grande susto, o que não me parece destituído de sentido, tratando-se de locais tão pouco frequentados.
Lembrava-se de um episódio, não muito antigo, com um lobo que lhe apareceu no caminho. Sim, um lobo, pouco selvagem diga-se em abono da verdade, mas era uma dessas feras que ilustram os contos infantis de outros tempos. Tinha sido ali colocado pelos serviços oficiais nalguma tentativa de repovoamento.

A “fera” afastou-se sem qualquer prejuízo para a nossa anfitriã, nunca mais o viu e contou-se mais tarde que fora abatido por caçadores, “fiquei com pena, eu gostava de ver o lobo”.

Iniciou-se nesta actividade com o pai, há mais de trinta anos, quando regressaram de Angola. Antes eram quase só cortiços, poucos e um só apiário que herdou. Depressa percebeu as vantagens da colmeia móvel e não só substituiu os equipamentos como ainda aumentou bastante os efectivos, hoje conta com 210 colmeias, tendo já tido mais de 300.

Contou-me que um dos episódios mais tristes da sua vida se deu quando encontrou grande número de abelhas mortas frente às colmeias, tratou-se de um envenenamento acidental, alguém usou pesticidas nas culturas e resultou em tal prejuízo para os insectos.
Nunca soube quem foi o culpado, mas nunca mais esqueceu a imagem das suas queridas amigas mortas ou sem conseguir voar no chão do apiário.

Também me disse que nem sempre está na aldeia, tem uma casa em Felgueiras onde se radica em curtos períodos para visitar a família, mas “quando estou na cidade, um dia dói-me a cabeça, no outro uma perna, por vezes dói-me o corpo todo, há sempre uma doença, dores que só passam no regresso e à vista das minhas abelhas…”

E se isto não chega para definir um apicultor, decerto que mais nada o fará.

Tanto na conservação das colmeias, impecavelmente pintadas, como na arrumação do apiário sem ervas, lixos ou outros trastes, em que o terreno parece ser sido varrido, adivinha-se o frequente e assíduo toque feminino.

Infelizmente não tivemos muito tempo para conversar, mas mesmo assim facilmente percebi que a minha interlocutora tinha muitos e desenvolvidos conhecimentos de apicultura. À minha pergunta revelou-me a sua estratégia para capturar enxames, assunto que enche de orgulho qualquer apicultor e a Dª Bernardete não foi excepção:

Tenho em cada colmeal, coisas da minha cabeça, (riu-se), um arame com uma pégazinha na ponta, meto-lhe um saco de plástico que é cosido à volta, e deixo aberto com um fiozinho. Subo à escada, coloco o saco por baixo e com a mão amarro-o por cima (do enxame) sacudindo depois as abelhas na colmeia”, “além mais à frente tive de subir três vezes a uma oliveira

Quanto ao uso do mel em casa “quase há dois meses que não pego no açúcar, o leite adoço com mel, gosto da torrada com mel, ponho-lhe um pouco de canela…” e quem sabe não seja este o segredo para tanta energia?

Nunca procurei saber se tinha medo das ferroadas, isso sim uma pergunta sem qualquer sentido, até porque já sabia a resposta que aí vinha…

À despedida pedi-lhe que deixasse um conselho, uma mensagem para as mulheres apicultoras, sobretudo para as que agora iniciam a actividade e que decerto muito têm a aprender com o seu exemplo:

Que elas andem para a frente, porque isto é uma coisa linda! Linda mesmo! Isto é a melhor terapia. Na Primavera a gente senta-se ao lado da colmeia a vê-las entrar carregadas de pólen, é maravilhoso…”

Quando estou a falar das abelhas esqueço-me que o mundo existe

No regresso destas andanças, enquanto faço a habitual digestão das surpresas e novidades que se me depararam, procuro sempre contextualizá-las com essoutra realidade mais dura e triste de quem vive num país em crise. Não foi difícil decalcar a “figura” da Dª Bernardete numa dessas formiguinhas laboriosas, a quem as brincadeiras tolas e irresponsáveis de uma criança lhe levantam barreiras e dificuldades, mas onde ela estoicamente e não sem sofrimento, continua o seu caminho, passa-lhe ao lado ou mesmo por cima, mas continua o seu caminho…

Obrigado Dª Bernardete

Joaquim Pifano
Paulo Ventura
Luís Lourenço

11 comentários:

Manuela Miguel disse...

Parabéns Pifano por mais uma excelente reportagem, no dia da mulher, mas essencialmente parabéns à D.Bernardete, que é uma mulher e tanto, não fora ela transmontana hehehehe .......
Feliz dia para todas as mulheres.

octávio disse...

O Monte do Mel está em todas as ocasiões, até no dia da Mulher. Linda experiência de vida aqui relatada. Parabéns.

Rui Vilela disse...

Também deixo aqui os meus parabéns á tia Bernardete e a todas as mulheres.
Como acompanhante naquele dia de visita, aos locais desta reportagem
quero expressar os meus agradecimentos ao Dr. Pifano e aos outros dois amigos, pela companhia.

Rui Vilela

Bernardete Valente disse...

Como anfitriã desta reportagem, fiquei sensibilizada com a descrição que foi feita á minha pessoa, não me sinto merecedora de tamanho elogio. Obrigada pela descrição da minha aldeia neste dia da mulher.

Bernardete Valente

Abelha Preguiçosa disse...

Eu ando sempre com pieguices sobre o que custa fisicamente trabalhar com as abelhas e por isso... sinto-me um bocado envergonhado após leitura deste post...

Associação de Produtores Florestais de Montemuro e Paiva disse...

Viva a D. Bernardete!!!

Isso sim é um bom exemplo de mulher apicultora...

Gostei muito do post!!!

D. Bernardete continue assim!!

Associação de Produtores Florestais de Montemuro e Paiva disse...

Parabéns Pífano!!

Por mais um post tão característico, principalmente nesse dia!!!

D. Bernardete, isso sim é que é exemplo de bravura e sabedoria... Parabéns!! É por isto e por outras que tenho orgulho de ser MULHER!!

Parabéns a todas as MULHERES!!!

Malijo disse...

Parabéns a Dona Bernardete, é uma Grande Apicultora e Também uma grande mulher.

Rodrigues disse...

Parabéns pela excelente reportagem e respectiva homenagem a tão valente SENHORA! Um exemplo de vida e dedicação.

Obrigado pela partilha!

Saudações Apícolas!

Rodrigues
http://abelhasdaleziria.blogspot.com/

Cristina Lobato disse...

Fiquei muito emocionada com a lição de vida e coragem da Sra.D.Bernardete e quando crescer quero ser assim. Bem haja pela partilha desta história, Sr.Professor e por todos os ensinamentos que me têm enriquecido. Como ainda estou a gatinhar na Apicultura, preciso de todos estes ensinamentos para prosseguir.Muito obrigado, Cristina Lobato-Monte dos Girassóis

Colina d'Ouro disse...

Fantástico post e parabéns a todas as apicultoras, em especial à D. Bernardete!