Era uma vez um Padre, um sonho e uma colmeia importada…
Foi há quase um ano que pela primeira vez ouvi falar no “criador” da colmeia Lusitana: o Padre Manuel Tavares de Sousa. Quem mo disse foi o Filipe Silva, de Rio Mau, durante o aniversário do Forumeiros. Falou-me também na existência de dois idosos dessa localidade que ainda trabalharam com o referido Padre, tal como do seu espólio apícola, hoje pertença do Sr. Francisco Brochado em Chaves.
Logo na primeira oportunidade rumei à bonita localidade de Rio Mau, na margem direita do Rio Douro. Cedo percebi que a importância apícola da região não se devia apenas a motivos históricos, como também à forte indústria ligada ao sector do mel e à própria flora muito abundante nas colinas.
À nossa espera estavam o meu amigo Filipe Silva, o Sr. José Gomes Pinto, seu avô, e o Sr. Joaquim Andrade Correia. Os dois idosos, hoje com 80 anos, ainda trabalharam com o Padre Sousa, sobretudo o último, ambos partilharam vivências e histórias desses tempos pioneiros.
Estávamos nos primeiros anos do Século XX, em Rio Mau, Concelho de Penafiel. Manuel Tavares de Sousa (20/08/1872 – 21/01/1958), natural de Capelos – Vale de Cambra, foi recebido oficialmente em Rio Mau (como padre) a 25 de Fevereiro de 1904, mediante um contrato de 900 réis mensais com a Confraria do Santíssimo Sacramento (Silva - 1993).
Entre outras actividades, marcou pelas iniciativas ligadas à música, à construção civil e ao gosto e prática da apicultura. Segundo Joaquim Andrade Correia, seu colaborador e discípulo “foi o pioneiro de todo o Portugal” referindo-se à prestação do Padre na apicultura.
A “história” do Padre Sousa e da Colmeia Lusitana conta-se em poucas palavras, a “invenção” da colmeia resume-se às sucessivas reduções e alterações de uma colmeia já existente, adaptando-a à realidade apícola dessa época. Com esta visita apenas tentei, em amena conversa informal com dois contemporâneos do Padre, tomar o pulso aos anseios e esperanças dos apicultores e da apicultura de então.
Enquanto entusiastas da apicultura, o Padre Manuel Sousa e o seu sócio o Dr. Manuel Amorim, importaram uma colmeia Dadant dos Estados Unidos da América, tinha 50 x 50 cm e levava 12 quadros. Não me souberam confirmar o ano desta aquisição, mas eventualmente que a reproduziram e utilizaram nas explorações apícolas.
Outras fontes referem inclusivamente a viagem do Padre Sousa e do Dr. Amorim aos EUA para esse efeito (Soeiro - 2006-2007).
Certo é que tanto o Padre como o Dr. Manuel Amorim acharam a colmeia demasiado grande, sobredimensionada para o tipo de apicultura que praticavam. “Essa colmeia foi considerada um monstro, (…) era um caixote enorme, muito fundo, pesado e cortaram-lhe dois quadros, fizeram a colmeia Prática.” Assim o disse Joaquim A. Correia. Esta alteração à colmeia Dadant é atribuída ao Dr. M. Amorim.
A colmeia resultante, pode-se dizer de desenho português (colmeia Prática), passou a ter como dimensões: 50 cm de comprido por 43 cm de largo.
“Olharam para a colmeia e chegaram à conclusão que esta era muito mais prática, ficou então a chamar-se a colmeia Prática…”
Durante a sua estadia em Angola, o Sr. Joaquim Andrade Correia, utilizou bastante este modelo de colmeia, achando-a inclusivamente muito vocacionada para a apicultura Africana, atendendo à riqueza da floração e aos espaços amplos.
O Padre Manuel Sousa, por seu turno, deduziu que a relação altura/largura dos quadros se adaptava mal à postura da rainha, pelo que tornou o ninho da colmeia Prática mais pequeno e surgiu assim a Colmeia Lusitana (Soeiro 2006-2007).
“O Padre? Tenho grandes recordações dele (…) acompanhei-o sempre, e ele tinha-me talvez por companheiro” assim continuou Joaquim Correia, “ele (o Padre) tinha uma maneira especial de me mandar, ele nunca dizia vais fazer isto ou aquilo, ele dizia: é preciso que …”.
Perguntei-lhe pelos efectivos e as produções do Padre Manuel Sousa, nessa época e respondeu-me que teria à volta de umas 100 colmeias, o que era muito nesse tempo. Quanto às produções, “Isso nunca tentei aprofundar, nem ele dizia, colhiam aquilo, dividiam o mel a meias, metade do Padre e metade do Roseira”.
Como pessoa, “o Padre vivia muito dentro da Cristandade, antigamente a Cristandade era um bocado diferente do que é hoje, (…) ele durante muitos anos leu o Evangelho, na missa, através de umas fitas de papel que no meu tempo já eram amarelas, ele lia aquilo e no fim dava sempre a mesma resposta ao povo: Olha, façam o que quiserem” e riu-se com esta recordação, “era um Padre assim”.
“O Padre era um grande construtor civil, todas aquelas boas casas que há em Rio Mau, aqueles chalets, eram feitos pelo Padre” Segundo Gomes Pinto e Joaquim Correia, Manuel de Sousa terá construído inclusivamente a sua própria habitação, onde tinha a oficina de colmeias e a melaria.
“Depois dedicou-se à apicultura, começou a fazer a tal colmeia Lusitana, foi a colmeia que fabricou durante muitos anos”. Continuou Joaquim Correia. “O meu pai foi sucessor dele, talvez o mais antigo (…) e eu entrei na mesma engrenagem, comecei a fazer tudo isso”.
Já José Gomes Pinto, passou menos tempo ao serviço do Padre, “trabalhava dois ou três dias por semana, eu era o Sacristão dele, e ele dava-me que fazer no tempo da cera…” Ainda assim acabou por ficar ligado ao sector, trabalhou durante 50 anos na “Manuel da Cunha Azevedo” (outro dos discípulos), a actual Valmoural.
Uma das recordações mais vivas na memória destes idosos, foi do tempo que em que era hábito colocar palha no forro do tampo das colmeias (palha de agasalho). Inicialmente as colmeias tinham esta particularidade, como a região era fria utilizavam este estratagema, lançando mão da palha de centeio para melhor proteger as colónias da intempérie. No entanto, tais extras eram apenas disponibilizados nas colmeias dos melhores clientes.
Era com incontido orgulho que me explicavam ao pormenor a forma de tecer e ajustar a palha, a minúcia com que pregavam milhares de tachas para fixar a chapa metálica ao tampo, cada colmeia seria decerto uma obra de arte.
E a conversa foi por aí, as colmeias vendidas a 260$00, o mel, esse pagava-se a 20$00 o kg, “números que a gente hoje fica maluco…”. O Sr. Joaquim Correia ainda escreveu no Jornal “As Abelhas”: “Escrevi algumas a dar pancada, pá! O estado não criou ambiente para que a gente progredisse…”.
Quando os idosos lembravam a cera moldada manualmente, os pacotes enviados pelo correio, os 4$50 que o Sr. Gomes Pinto ganhava diariamente por esse serviço, o Joaquim Correia comentou algo que achei muito curioso: “Não sei se sabe, a abelha em Angola é mais pequena que aqui em Portugal, enquanto que em Angola eram 850 alvéolos/dm2, aqui eram apenas 750 alvéolos/dm2” referindo-se à moldagem da cera.
Por mim ficaria ali uma eternidade a ouvi-los, mas fazia-se tarde e ainda tinha um bom punhado de quilómetros pela frente. À despedida pedi ao Joaquim Correia para deixar uma mensagem às novas gerações de apicultores:
“Isto é muito bonito, tratar com abelhas é muito bonito, não tenham dúvidas. Depois de a gente se entranhar dentro do sistema delas (as abelhas), porque elas têm um sistema de vida muito diferente do nosso, elas procuram a pureza…”
Rumamos em direcção a Chaves, onde combinara encontrar-me com o Sr. Francisco Brochado, apicultor e actual detentor do espólio do Padre Manuel Sousa. O objectivo era fotografar os ditos equipamentos e se possível saber algo mais do criador da colmeia Lusitana.
Pelo caminho percebi que tal “criação”, ao contrário de tantas outras que resultaram em efemérides, datas memoráveis ou nomes de ruas, esta foi bastante discreta. Como mo disse um “riomauense”, não se tratou de uma verdadeira criação, apenas se alteraram as dimensões de uma colmeia…
Certo é que do estímulo criador e da “obra” do Padre Manuel Sousa, nasceu a maior indústria de colmeias e material apícola do nosso país. Muitos dos seus discípulos e colaboradores deram continuidade ao seu trabalho, e hoje, Rio Mau conta com várias fábricas de colmeias. Manuel da Cunha Azevedo (actual Valmoural); Pereira, Sousa & Figueiredo; Promel e Apicorreia, entre outros, exportam actualmente milhares de colmeias para todo o mundo, sendo decerto detentoras da maior quota do mercado português.
Nos diálogos que mantive nesse dia percebi que boa parte dos instrumentos e apetrechos utilizados na apicultura pareciam ter para os autóctones outra importância. Referiam-se a eles com alguma deferência, quase que eram personificados ou até idolatrados, notei isso em todas as pessoas com quem falei ligadas à apicultura, mesmo aos industriais do sector.
Talvez por a maior parte dos utensílios apícolas (que me pareciam habituais e corriqueiros) terem sido criados ou melhorados em Rio Mau, para os riomauenses adquiram outra dimensão. Diria quase uma relação familiar, um valor sentimental, conhecem-lhes a história, assistiram-lhes ao parto.
Creio que me deixei contagiar por essa celebração da apicultura, depois disso olho com outro sentimento para os instrumentos e utensílios apícolas…
Espólio do Padre Manuel Sousa, pertença de Francisco Brochado - Chaves:
Gabinete onde Francisco Brochado expõe vários objectos de utilidade apícola, boa parte deles pertenceram ao Padre Sousa.
Alimentador de tipo inglês, fabricado em Rio Mau.
Quadro porta cúpulas com suportes/cúpulas de madeira. Cúpula com jaula de rainha em arame de aço enrolado em mola.
Prancheta para núcleo, com encaixes onde se colocavam os alvéolos reais.
Caça zangãos fabricado em Rio Mau.
Pulverizador de Xarope, fabricado em Rio Mau e utilizado para juntar colónias de abelhas.
Material apícola de maiores dimensões.
Fumigador, alimentador tipo inglês e faca de desopercular. Ao fundo uma prancheta com escapa-abelhas.
Fumigador de modelo americano fabricado em Rio Mau.
Centrifugadora tangencial de mel.
Depósito de mel e prensa para favos.
Prancheta com escapa-abelhas, colocada entre o ninho e as alças antes da cresta.
Prancheta com grade excluidora de rainhas para utilização em cortiços.
Tina de desopercular, fabricada em Rio Mau.
Sr. Francisco Brochado - Chaves.
Colmeias que pertenceram ao Padre Manuel Sousa.
Não é muito "pacífico" o consenso para as dimensões das colmeias apresentadas. Tanto as referências consultadas como nos actuais modelos e fabricantes há ligeiras discrepâncias...
Participaram nesta reportagem:
Joaquim Pifano, Luísa Garcia, Filipe Silva, José Gomes Pinto, Amadeu Pereira, Mario, Natália e Beatriz Serrano, Constantino Azevedo, Joaquim Andrade Correia, Francisco Brochado, Paulo Ventura, Francisco, Manuela, Rúben e Raquel Rogão.
Referências:
Silva, Ario Soares da - Biografia - 1993 - Rio Mau em Movimento - http://pt-pt.facebook.com/note.php?note_id=153814021313210
Soeiro, Teresa - Em Busca do Doce Sabor - 2006 - 2007 - Portugalia
02 abril, 2011
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11 comentários:
Bastante tenho procurado saber sobre a origem da colmeia Lusitana, mas esta singular aptidão do nosso povo em guardar o saber para si,...
Penso que seria merecedor o criador e a obra, serem apresentados ao mundo, pois hoje o modelo Lusitana, representa uma significativa parte das colmeias existentes no nosso pais.
É curioso o facto de por detrás da craição do modelo Lusitana estár um padre, ao que pareçe bastante dados à apicultura.
Saudações apicolas
Francisco
Estas são as colmeias de que me lembro em casa dos meus pais. Achava muita piada ao pequeno telhado que ficava por cima da entrada das abelhas.
Bom trabalho!
Os meus sinceros agradecimentos por este extraordinário e importante aporte de informação para a apicultura nacional.
Eu tinha conhecimento que a colmeia Lusitana derivava da Dadant, mas nada mais, imperdoàvelmente, sabia do assunto.
Da colmeia Prática pouco se fala e penso serem actualmente poucos os exemplares em ainda em uso,embora pouco saiba sobre isso.Lembro-me que há cerca de trinta anos atrás, os sócios mais antigos da SAP se referiam a ela com alguma frequência, referindo ser demasiado volumosa para a nossa apicultura o que limitava a sua utilização a poucas zonas do país.
Fica, depois da leitura do artigo, também a perceber-se porque razão a colmeia Lusitana predomina no norte do país, enquanto no centro e sul, a Langstroth é vista com mais frequência.
Fiquei também com curiosidade de ler o livro de Teresa Soeiro, que refere na bibliografia.
Um abraço.
Abelhasah.
É a única coisa que eu gosto nos padres(ou melhor, nos monges), eles revolucionaram a apicultura. :)
Se não fosse descoberta a (ignóbil)parafina com certeza o vaticano já tinha desenvolvido abelhas imúnes à varroa, e descoberto a causa do SDC; não fossem faltar velas nas Igrejas deste mundo deste mundo.
PS:Acho que o vaticano ainda usa cera pura de abelhas.
O Vaticano bem podia patrocinar a investigação para resolver tais problemas da apicultura :-)))
Joaquim Pifano
Parabéns pela "estória". Assim, sabemos quem verdadeiramente contribuiu para a apicultura em Portugal e o porque de uma elevada concentração de fábricas de apicultura em Rio Mau. Curiosamente, o Presidente dos apicultores da Galiza (Pontevedra) uma vez confessou-me que teremos uma das melhores colmeias (Lusitana) adaptadas à biologia da abelha e ao clima.
Tudo tem uma razão e/ou uma origem.Normalmente são os curiosos que olham para as coisas e as procuram entender. A partir daí sentem o impulso de as melhorar ou alterar. Bravo ao Padre Sousa e aos que o acompanharam.
M. Casimiro
Boa tarde,
Seria possível fornecer-me o seu contacto de email ou telefónico? O Museu Municipal de Vale de Cambra pretende produzir uma pequena exposição sobre a apicultura e o facto do Padre Manuel Sousa ser natural do nosso concelho desperta-nos natural interesse.
Cumprimentos,
Alexandre Rodrigues
Olá Alexandre Rodrigues,
Envie-me por favor um mail para montedomel@gmail.com e então dar-lhe-ei o meu número de telefone.
Apoio desde já a iniciativa e terei o maior gosto em ajudar no que me for possível.
Cumprimentos
Joaquim Pifano
Para quem quiser ler o artigo da referência bibliográfica:
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9314.pdf
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5669.pdf
Cumpts,
Zé Jardim
Lindissimo teixto eu mesmo comp
Comprei colmeias Lusitanas nessa antiga fàbrica tal como Comprei um eistractor que me custom 600 escudos vejam bem os anos que jà là vaò eu natural de aguiar Sousa um grande abraço para tòdos os Abelheiros de Portugal
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