20 março, 2009

Apontamentos: Diário de um Apicultor Transumante

30 dias antes:
Ainda estamos em plena floração de Primavera, mas convém desde já começar a prospectar os locais de transumância para o Verão.
As florações que mais interessam nesta região são o Girassol, a Melada de Azinho e o Cardo. Podemos arranjar locais fixos para as últimas duas, mas a primeira, uma cultura anual, nem sempre a encontramos no mesmo local.

Costumo falar com agricultores conhecidos, ou dar umas voltas de carro pelos locais de regadio, para ver se já há girassol nascido. Nos últimos anos não tem havido muita escolha, esta cultura foi quase abandonada, se bem que pareça querer recuperar.
De qualquer forma, quando encontro um desses locais começo por pedir autorização ao proprietário para colocar lá as colmeias. Alguns até agradecem, mas há outros que colocam uma série de condições, parece que estão a fazer um favor gigantesco. De facto até estão, mas sem qualquer custo beneficiam bastante mais.
Feitas estas diligências costumo ir ao local verificar:
- Os acessos
- Um local com muita sombra para as colmeias

- A proximidade de água (limpa)
- Existência de outros apiários próximos
- Existência de outras culturas de regadio sujeitas a muitos tratamentos químicos
- Proximidade de Azinheiras ou zonas com Cardo
- Confirmar o perímetro de acção do pivot, as colmeias dispensam a rega...

- Já que é só pedir... o ideal seria mesmo encontrar um sítio central onde houvessem várias folhas de Girassol e em diversas fases de desenvolvimento, o que faria com se prolongasse a floração no tempo.

Este último aspecto tem consequências curiosas: antigamente o Girassol era de ciclo longo, a floração durava quase um mês. Desta feita, o encabeçamento aconselhado apontava para uma colmeia para dois hectares. Com a descoberta de novas cultivares, mais rápidas, a floração quase não chega aos quinze dias, pelo que chego a fazer encabeçamentos de duas colmeias/hectare com bons resultados. Até porque uma vez instaladas pode-se estimar a densidade de abelhas, contando o número destas em cada flor.
Não sei muito sobre esse aspecto, o ano passado, os espanhóis, numa polinização paga, queriam cerca de 10 abelhas em cada 100 flores de Girassol (num encabeçamento exigido, de três colmeias/hectare). Já houve um ano, quase sem Girassol em que cheguei a contar 3, 4 e até 6 abelhas/flor...

Todas estas circunstâncias acabam por influenciar a localização do apiário transumante ou até por inviabilizar esta decisão.
Se encontrar um bom local costumo limpá-lo de matos e pastos, junto às áreas de regadio também há incêndios, e o uso do fumigador dá uma grande ajuda...

Curiosamente, uma das observações que me é mais difícil é a previsão da deslocação da sombra das árvores, para que as colmeias apanhem o mínimo de Sol directo. Há quem tenha imensa prática, mas eu acabo por me deslocar ao local a uma série de horas diferentes. Por vezes até procuro um grupo de árvores juntas, uma espécie de telheiro natural.

Uma semana antes:
Normalmente nos primeiros dias de Junho, é feita a cresta, onde aproveito para avaliar as colónias em termos de população.
Nesta fase há que tomar uma série de decisões, pouco lineares, e por vezes até pouco correctas. Vamos começar pela menos pacífica, a questão da sanidade apícola.
Após uma Primavera muito produtiva, com muitos ciclos de criação nas colmeias, é natural que a população de ácaros de Varroa se encontre também desenvolvida. Para o saber, nada como efectuar o “Teste da Varroose”, o que por vezes nem é necessário, ou seja, quando se encontram muitos ácaros sobre as abelhas e ou abelhas jovens com as asas atrofiadas no exterior e sobre os quadros.
De qualquer forma, é arriscado prolongar o período de actividade (e sem tratamento) por mais três ou quatro meses:
- A aplicação de medicamentos quando há alças sobre o ninho é impensável, uma opção que nem sequer considero.
- A não colocação de alças sobre as colmeias, para fazer um tratamento correcto, também é arriscado, pois a colecta de néctares é imediata no local de destino.
- O adiamento da transumância, mantendo as colmeias no local de Primavera, ainda é pior, pois a falta de estímulos externos levam `inibição da postura e à redução da população. De modo que depois precisariam de demasiado tempo para atingirem os níveis necessários à produção.
Só me resta uma alternativa, mas contrariando o meu despudor em “dizer o que me vai na alma”, não me sinto à vontade em “escrever” como resolvo o problema. De uma forma correcta, creio, mas que pode dar azo a más interpretações. Se a curiosidade for muita... telemóvel ou E. mail...
Certo é que a população de Varroas acaba muito diminuída, sem riscos para as abelhas e menos ainda para o mel.

Cinco dias antes (pelo menos):
Preencher e entregar o Modelo da DGV para deslocação de apiários, poderá fazê-lo na sua associação de apicultores ou na Zona Agrária. Original para a DGV, duplicado para o apicultor e triplicado para a entidade receptora...

Um dia antes:
Passagem pelo apiário original para retirar todas as tábuas de voo, só atrapalham durante o transporte.
Tempo também para outra decisão, esta mais pacífica, a colocação ou não de alças vazias antes do transporte. Pessoalmente nunca o fiz, mas há quem defenda que é uma óptima estratégia para evitar perdas no excesso de abelhas que mal cabem no ninho após a cresta, e também morrem menos na viagem. Uma opção válida e a considerar.
A revisão ao veículo a utilizar para o transporte. Um dos aspectos fundamentais para esta actividade. Já fiz transumância de colmeias num percurso em que atravessava sete povoações. A ocorrência de imprevistos dentro de uma localidade: avaria, pneu roto, carro imobilizado, falta de combustível, nunca me sucederam e nem quero pensar nas consequências...
Quem quiser perder tempo, ou ficar mal disposto, ainda pode aproveitar para ir a uma agência de seguros e pedir um seguro contra terceiros... A única vez que tentei a gracinha, só me faziam um contra incêndios, mas tinha de limpar os matos um km em volta do apiário. Ainda estive para perguntar se essa apólice dava direito a um serviço de catering para o caso das abelhas terem fome...

Mais coisas de última hora:
Contactar o proprietário ou o guarda da propriedade, avisando-os que nessa noite vamos circular no local, não nos vão confundir com caçadores furtivos.
- Verificar o estado das cintas para aperto da carga.
- Providenciar uma lanterna.
- Não esquecer as esponjas, ou réguas reguladoras de entrada que impeçam a saída de abelhas.

- Garantir um ou dois ajudantes, a apicultura em geral e a transumância em particular são muito perigosas quando praticadas por uma única pessoa.
- O telemóvel, já evitou que eu passasse uma noite com a carrinha imóvel e com as rodas da frente quase sobre um precipício. A existência de um amigo com um pronto-socorro, que seja apicultor e com paciência para um frete destes às três da manhã são muita coincidência. Mas eu tenho um, segue um grande abraço para o Sr. Calado de Alpalhão...

Dia “D”, ou Hora “H”...
Nesta data, é suposto o Girassol ter aproximadamente 50 cm de altura. É a fase ideal para a colocação das colmeias. O néctar extra floral disponibilizado pela planta antes da floração, servirá como estímulo à postura da rainha e consequente dimensionamento da colónia para a fase de produção. Dá a sensação que é a própria planta (Girassol) que cuida das abelhas, preparando-as em quantidade para a sua própria polinização.
Quando fazer o transporte? À noite ou de madrugada?
Os “defensores” da madrugada só argumentam com as temperaturas mais baixas...
O meu carro não tem ar condicionado, ainda assim prefiro ir ao cair da noite. Se alguma coisa correr mal, falta muito para o Sol nascer e tenho cerca de oito horas para resolver o problema.

Por falar em “problema”, já tenho o Luís à minha espera para a “estiva”. Uma jóia de rapaz, mas tem com cada ideia sobre a arte apícola...
Entre o “ahhhh, eu não preciso disso (polainitos)” e vê-lo dançar um “fandango” acompanhado com gritos de dor foi uma questão de minutos. O Luís enfrenta esta actividade com um estoicismo digno de registo.
Chegados ao apiário, devemos deixar o motor a trabalhar e os faróis desligados. A vibração do motor acaba por “acalmar” as abelhas evitando que saiam das colmeias, ou pelo menos em quantidade.
O “sexo dos anjos”: quadros paralelos ao deslocamento do veículo ou transversais? O manual de condução do João Catatau é omisso, ainda assim prefiro a opção “paralelos”, sou dos que creio que há mais oscilações frente-atrás do que laterais...

Nunca sobreponho três fiadas de colmeias, o peso e as temperaturas altas poderão causar estragos em mim e nas abelhas, respectivamente.
Terminada a carga, há que imobilizá-la com cintas de aperto compradas para o efeito. Muita atenção nesta etapa, um ressalto no caminho pode aliviar a pressão e soltar algum gancho, costumo fazer paragens frequentes para verificar a carga. Por outro lado só tenho colmeias Lusitanas e algumas Reversíveis, o que ajuda muito no acomodar da carrada.

Já no caminho do Girassol, o Luís iniciou um estranho relato acerca de uma peripécia das suas abelhas, que passo a contar:
Estava mesmo indignado, tinha acabado de chegar ao apiário quando se lhe deparou este estranho fenómeno. Abriu uma colmeia e num ápice todas as abelhas fugiram para outra caixa ali ao lado.
Todas Luís? “Todas, até a p... da rainha fugiu”.
Antes de lhe dizer que decerto se tratava de um caso de pilhagem a uma colmeia “morta”, ainda tentei “tirar uns nabos da púcara”, quando ele me disse: “... e depois, já dentro da outra caixa, mataram-se todas”. Creio eu que a p... da rainha também terá posto termo à vida, mas agora já não encontrei razões para o sucedido.
O que se terá passado Luís? Não demorou muito até sair um “Sei lá pá, acho que não gostaram do cheiro do mel da outra colmeia...” E se isto não é razão para um suicídio colectivo não sei que outras razões o justifiquem...
Íamos nesta “desconversa” quando sou convidado a encostar pela brigada da GNR. Boa noite Sr. Agente, se não se importar eu paro o carro mais à frente (onde não havia luzes) e venho aqui trazer-lhe os documentos.
Então porquê?” Perguntou ele intrigado. Foi quando fiz um gesto com o polegar para ele olhar para a carga da carrinha. “Mas pode seguir, pode seguir, deixe lá isso...”. O último “pode seguir” já me pareceu um “desaparece daqui depressa”, mas acatei o conselho e fomos andando. O Luís já tinha esquecido a p... da rainha suicida e ria a bandeiras despregadas.
Já perto do destino, acontece-me sempre o mesmo, por mais vezes que lá vá durante o dia, à noite a paisagem muda completamente. E a entrada para o apiário, essa nunca está no mesmo local, daí a importância da lanterna.
Encontrado o sítio, desligar os faróis mas nunca o motor, pelas mesmas razões apresentadas lá atrás. Confesso que preferia carregar 100 colmeias do que descarregar dez, fisicamente é muito mais penoso. Novo arraial de “dança” protagonizado pelo Luís que dispensou os polainitos...
A disposição das colmeias, nestas circunstâncias, não tem muito a ver com a instalação habitual de um apiário. A orientação e exposição das caixas deve ser feita em função da sombra disponível, entre outros factores apontados no início do escrito, sendo os pontos cardeais pouco importantes, até porque a estação e as temperaturas são outras.
Está feito, tudo no respectivo local, uma última revisão para ver se está tudo em ordem e... caminho de regresso.
Vá, voltem lá atrás e destapem as colmeias, retirem as esponjas ou as réguas reguladoras de entrada... já ouvi relatos demasiado dramáticos acerca destes esquecimentos.
Não conheço sensação como a do regresso de uma transumância, amanhã voltamos ao mesmo sítio para confirmar se está tudo bem, deixar uma ou duas alças, conforme a população de cada colmeia e deixá-las em paz nos próximos quinze dias.
Já perto de casa, o Luís apresentava-me um projecto de semear favas frente ao seu apiário no próximo Inverno. Mesmo entre as Estevas e Sargaços, a terra era a indicada, “vai ver, vai ver a produção que vão tirar da flor das favas...”
De facto não há sensação como a do regresso de uma transumância, graças ao cansaço a nossa paciência é de tal forma dessensibilizada que nos permite ouvir tudo...

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde,
Um abraço para o Luis, não sendo especialista na matéria é um bom rapaz. As transumancias no meu ponto de vista marca a fronteira entre apicultura profissiol e amadora, inclui-me nesta última, estou ao nivél do Luis, somos uns curiosos com gosto pela arte.
Bons voos
Francisco

Mário disse...

(Andei a ver deste post, sabia que ele existia, queria só desabafar uma infelicidade.)

Pois, ora ai está, eu esta semana se soubesse tinha metido umas colmeias dentro do carro, com essa estratégia quem sabe ainda agora tinha a carta :( e não tinha pago uma multa!

Unknown disse...

boa noite, pode contactar-me para trocarmos ideia sobre o tratamento à varroa em período de transumancia.

abraço joão

Alien disse...

Olá João,

Envie-me então um Email para:

montedomel@gmail.com

abraço
Joaquim Pifano