20 novembro, 2008

Recordar os Cortiços

Sempre me impressionou a forma como se romanceava a apicultura, mesmo dos tratados científicos ou técnicos escapava sempre uma ponta de poesia, ou um sentimentalismo mal contido.

Até na actualidade, suponho que seja difícil escrever sobre o assunto sem romancear, pois esta actividade, apesar da componente económica, não deixa de ter uma parte lúdica. Não sei, se pelo tamanho das abelhas, que em comparação com vacas, ovelhas ou porcos, as torna mais em bichos de estimação, como peixes de aquário, do que em animais de exploração pecuária. Talvez até por passarem a vida nas flores, ou pelas metáforas como animais laboriosos, o que é um facto é que a Apicultura se compara muitas vezes a um conto de fadas, onde não faltam rainhas pelo menos.
É por isso, que em tempo de apicultura mobilista, muito dinâmica, com grandes produções e grandes problemas, gostava de recordar, ou pelo menos de avivar a memória do que foram os cortiços, que contra tudo e contra todos, ainda subsistem.

Nos descortiçamentos, quando surgia um caneiro mais redondo e de boa cortiça, fruto de arvore saudável, e de tirador experiente, era de imediato posto de lado, e até escondido, não fosse o proprietário da terra discordar.
Eram assim obtidas algumas pranchas de cortiça, e guardadas até à Primavera seguinte, onde albergariam algum enxame.
Nos tempos livres, o mestre abelheiro, normalmente detentor de alguma arte para manusear este tipo de materiais, cortava e “aparelhava” o caneiro de cortiça, de modo a dar-lhe a forma indicada. Era então necessário unir os bordos, para lhe dar a forma cilíndrica e tornar a construção mais estável. Esta etapa não era decerto fácil, pois a disponibilidade de pregos ou arames não era muita, usavam-se então “sevinos”, vulgo, pregos em madeira de esteva, que fixavam a cortiça.
De seguida, e de novo com cortiça, confeccionava-se o tampo, uma prancha redonda e plana resolvia o problema, sendo também fixa com os pregos de madeira. Faltam ainda as “trancas”, escoras feitas com duas varas de esteva, e cruzadas perpendicularmente no interior do cortiço, duas ou três trancas eram suficientes para escorar os favos.
Para finalizar, recortava-se a abertura por onde passariam as abelhas. Os apicultores mais metódicos teriam ainda o cuidado de “barrear”, todas as frestas e junções do cortiço com barro, e estava assim pronta a colmeia.
Vinha então o esperado tempo dos enxames, nos meses de Março e Abril, esfregavam o seu interior com estevas, alecrim e principalmente com rosmaninho, conferindo-lhe um aroma inconfundível a mato, havendo até quem os deixasse por largas temporadas, com estas plantas no interior.
O cortiço era colocado estrategicamente, escondido numa balsa ou arbusto, num local onde passasse uma “canada” de abelhas, entendendo-se por canada, um local de passagem frequente de enxames, e aguardava-se pacientemente durante alguns dias que este fosse povoado. Quando tal acontecia, e consoante os apicultores, a colmeia era deslocada para a silha, ou então esperavam pelo Inverno, “quando as ceras estavam feitas” , para que pudessem ser transportados.
E realmente havia, e há, quem mantenha estes apiários ancestrais, e de difícil maneio, num estado impecável, todas as ervas e arbustos no espaço envolvente são arrancados, para evitar incêndios, ou que alberguem pragas e predadores das abelhas.
Encontrei diversas vezes, apiários deste género, com uma sebe, feita de estevas em paliçada, ou com alecrim plantado, onde o apicultor mantinha uma estrutura em madeira, com arbustos secos de carqueja, pendurados, onde os enxames iriam pousar.
Relataram-me a ocorrência de apiários com cerca de duzentos cortiços, sendo nesses tempos perfeitamente viável um encabeçamento dessa ordem.
Verdadeiramente notável, é o dia da cresta, “no quarto minguante de Agosto, quando não há criação! ”, todo o ritual que envolve este episódio. Tudo a postos, para que nada falte, o mestre abelheiro e alguns ajudantes, os alguidares de barro para o mel, o pano de linho branco, para afastar abelhas e impurezas dos favos, a crestadeira, ferramenta para extrair os favos, e o fumo, de fumigador ou apenas uma serapilheira incandescente que se sopra.

É madrugada, pesam-se os cortiços para estimar a sáfora, e mãos à obra. É um dia de festa no Alentejo, semelhante à matança do porco ou outro acontecimento do género. Retira-se todo o mel da parte de cima do cortiço, desde o tampo até às trancas superiores, sensivelmente um terço, “o resto é para elas, bem merecem”.

Dizia-me alguém, num dia de cresta “o mel das caixas, é muito bom, mas não é o mesmo, não sei se é da cortiça...”.
Em casa a azáfama continua, as mulheres esmigalham os favos em pedaços muito pequenos, que seguem depois para a prensa de molinete, ou então improvisada, com o mel e a cera envolvidos num pano, sobre o qual se coloca uma pedra ou objecto pesado.

Uma vez extraído o mel, é ainda filtrado e acondicionado em recipientes, e a cera comercializada em bolo, tal como sai da prensa, ou purificada.

É fácil perceber que, com todos os requisitos sanitários, e higiénicos exigidos por lei, não é possível manter e rentabilizar explorações apícolas com estas características, hoje pouco mais são do que um ponto de referência.
Todas estas práticas, actualmente em desuso, ou pelo menos desaconselhadas, encerram uma magia própria para quem labuta nestas lides, mesmo os apicultores profissionais as recordam com algum saudosismo.
Texto que publiquei há uns anos atrás na revista "O Apicultor"

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