19 setembro, 2008

Um conto de José Falcato Varela

Uma homenagem póstuma ao meu primo José Varela, grande companheiro de infância do meu pai, uma sensibilidade extrema para as tradições, o campo e para o mundo natural. Publicou imensos contos sobre os costumes e tradições de Casa Branca no jornal Brados do Alentejo de Estremoz.
Foi também o autor do livro Aldeia Branca - um sortilégio da infância, inteiramente dedicado à sua terra natal.
Ofereceu-me este conto exactamente 40 anos depois de o ter escrito...

Instantâneo (17):
Morte de uma Abelha


Três horas da tarde. Junho. O calor abafa. À sombra da velha pereira, sentado numa velha cadeira, João Manuel estuda. Os pássaros cantam, embrenhados na espessa folhagem da nespereira, a desabar de nêsperas por cima do poço. O caldeiro descansa. Ao fundo, dormem os restos do velho galinheiro. Falta agora referir as afanosas abelhitas que teimam em lembrar a João Manuel as trabalhosas geórgicas de Virgílio. São centenas, todas zumbindo a seu lado, sugando o néctar precioso. Uma delas, contudo, permanece indiferente a este belo manjar. Foi vítima de uma ardilosa aranha. Como se arranjou, nem João Manuel sabe. O facto é que ela ali está... E de que maneira!... Na extremidade do fio de baba está a aranha, e nas suas minúsculas mandíbulas, a abelha enclavinhada pelo dorso. Esta agita as patas, mas sem resultado. Vai morrer, a pobre. João Manuel inquieta-se, mas o exame está próximo. É preciso estudar... Tenta embrenhar-se no estudo. A imagem aranha/abelha interpõe-se. “É preciso salvar a simpática abelhita”. Fecha o livro e com ele tenta aliviar a carga da aranha. Logo rebolaram ambas, criminosa e vítima, tão bem seguras elas estavam. Foi preciso um pauzito para as separar. A aranha viu assim perdida a sua presa. João Manuel quase sentiu pena dela. Mas num ápice, eis que sobe a toda a pressa na corda invisível, qual ágil marinheiro, e, furiosa e matreira, retoma posição para nova emboscada. Agora, parada, só as mandíbulas se agitam, frenéticas.

João Manuel desce os olhos até à capa do seu livro de História e, quando esperava ser recompensado com os agradecimentos da abelha agora libertada, eis que a pobre expira num aceno lento das suas patitas.
Com cuidado, para que a morte não lhe fosse mais difícil, colocou-a numa pedra da calçada que lhe pareceu mais branca e lisa. “Mas é preciso estudar. O exame está à porta...” Passados momentos, fechou o livro e os seus olhos procuraram, curiosos, a abelha doente. Estava morta. “Afinal, o mundo é feito de carrascos e de vítimas”, pensou revoltado.
Alheias à sua morte, as companheiras zumbem alegres, sugando o mel de flor em flor. O gatito, amodorrado na calçada quente do quintal, lambe a pata satisfeito.

José Falcato Varela, Casa Branca, 03-06-1962

Curiosamente, quando fiz a fotografia que acompanha o texto, há dois anos atrás, também não me contive com a “emboscada” da aranha à abelha que pastava na flor de girassol e... borrei a pintura.

1 comentário:

PM disse...

Quando me vejo na mesma situação fico indeciso: o primeiro impulso é para salvar a vítima...mas depois o predador fica sem comida...